O homem entrou na jaula da leoa. E morreu

O homem entrou na jaula da leoa. Pelo menos parecia uma leoa. Que, me ensinam os progressistas, pode muito bem se identificar como leão. Ou até com uma hiena, sei lá. Jamais saberemos e, portanto, se for este o caso estaremos para sempre cometendo o crime de transfelinofobia. Mas quero falar sobre o sujeito. Presumivelmente homem. Supostamente doente mental. Obviamente em algum tipo de surto. Que morreu ao entrar na jaula da… leoa.
“Morreu como os primeiros cristãos no Coliseu”, pensei assim que vi as imagens. (Por que vi as imagens, não sei). Não que ele seja mártir por isso. Complicado. Até poderia enveredar por essa metáfora, mas não devo. Porque não convém. Do contrário, o que é uma simples e intrigante tragédia pode se transformar em algo pior. Em polêmica. Imagina só o estrago. Se o gesto tresloucado fosse pela causa animal ou por uma causa política qualquer. Pode apostar: a esta hora todo mundo querendo saber em quem votaram a leoa e o sujeito.
No meu tempo
Noutros tempos, no entanto. Quando a notícia era o fato sem tantas arestas, não se falaria em outra coisa, e sim em outros termos. É o que dá beber demais. Coitado, nunca foi muito bom da cabeça. As más companhias… Até que, no almoço de domingo, depois de servidas as carnes e as cachaças, eis que um tiozão criaria um apelido para os envolvidos. Assim, sacrificando o trágico no altar do cômico, nos sentiríamos melhores. E é bem capaz que o mesmo tio que fez a piada puxasse uma Ave Maria pela alma do sujeito.
Somos assim. Cruéis numa frase, solidários noutra. Simples e complexos. Principalmente contraditórios. Ou éramos, antes de nos deixarmos seduzir pelo lero-lero puritano de que sobre certas coisas não se fala. Muito menos se brinca. De novo. Ando pensando bastante no lero-lero puritano. Nisso que nos transformou nisto. Sempre essa obsessão pela perfeição e tal. Mas não quero ser pessimista, por isso me deixe voltar ao passado para dizer que, no meu tempo, os malucos tinham um propósito. Davam medo. Nos inoculavam a dúvida: será que também sou?
A reportagem
Por falar em no meu tempo, havia ainda a reportagem. Falo daquela que foi a Era de Ouro de quem escrevia, mas também de quem lia. De quem se interessava e tinha curiosidade. Era a história por trás da tragédia, aquela que todo mundo queria saber. Não para julgar, tá, talvez fosse para um julgar um pouquinho, que todo mundo é pecador. Mas era principalmente para entender o que levou ao desfecho trágico. Para dar algum sentido ao que não faz muito sentido. Afinal, não é todo dia que alguém morre atacado por um animal selvagem. E uma leoa, ainda por cima.
“E o Fulano, hein?”
Para entender, sim, mas também para se compadecer dos parentes e amigos que um dia, passada a dor, hão de comentar à toa numa reunião familiar:
“E o Fulano, hein?
“O filho do Sicrano?”
“Esse mesmo. Trabalhava com o Beltrano cunhado meu…”
“O que aconteceu com ele?”
“Você não sabe?”
“Não! Conta, homem!”
“Ah, foi há muito tempo. 2025, se não me falha a memória. Finalzinho do ano. Quase Natal. Morreu comido. Por uma leoa. Em João Pessoa”.
“Deixa de falar bobagem! E eu aqui curioso pra saber. Desde quando tem leão em João Pessoa? Cê é besta mesmo!”, argumentará um outro todo orgulhoso. Veja você como ele estufa o peito, confiante no argumento biológico e geográfico, aparentemente irrefutável. E no entanto sabemos nós que vivemos o fato: este é um daqueles casos em que a lógica científica passa por tantos desvios, pega tantos atalhos, vai, volta, dá pulos e cambalhotas, e acaba sendo o que é: a história triste de um homem com transtornos mentais que morreu atacado por uma leoa. Em pleno litoral do nordeste. Do Brasil. Sim, em João Pessoa.
Tudo tende ao exagero
E se você foi um leitor esperto e atento deve ter percebido o que disse o personagem do futuro ao sabichão incrédulo com a possibilidade de ter havido leões, e em João Pessoa, ainda por cima: que o Fulano foi comido pelo leão. Não foi. Mas isso é ou era próprio das histórias improváveis de antigamente: com o passar os anos, os detalhes reais iam dando lugar à imaginação. Ganhavam corpo e cores e sons. Homens comuns, talvez até doentes mentais, viravam heróis ou vilões. E até felinos ganhavam asas e escamas, ao gosto de quem os imaginava.
É que, no futuro, tudo tende ao exagero. Por isso não vou duvidar nada se o (com todo o respeito) maluco de hoje amanhã se tornar o herói de uma valentia inventada qualquer. O protagonista de um evento histórico – por que não? Talvez ele tenha pulado na jaula para salvar uma criança. A filha de alguém importante. Valentia inventada pela qual ele será lembrado até que um historiador rebelde e entediado, sobretudo entediado, sem ter coisa melhor para fazer e também porque é um espírito-de-porco, só pode, decida acabar com o mito que durante décadas foi para o homem comum exemplo de virtude.
Matéria: Gazeta do Povo





