Com Júlio Lancellotti, filme muda história para mostrar santa trans

Uma jovem órfã de mãe precisa passar por uma série de infortúnios, como a falsa acusação de um crime, para poder viver ao lado do pai. Após uma breve vida repleta de privações, seu martírio é reconhecido e seu nome passa a ser venerado. A história não só se parece com um filme; ela realmente ganhou as telas em 2022 e em 2023 foi premiada em um festival de cinema na Bulgária.
Mas há um detalhe, longe de ser pequeno, que precisa ser destacado. O filme em questão quer reescrever a vida de Santa Marina de Bitina como sendo “Marino, um monge transmasculine”. O curta-metragem “São Marino”, que muda a história para mostrar o que seria uma “santa trans“, recebeu recursos públicos e tem a narração do padre Júlio Lancelotti.
A produção dirigida por Leide Consuelo Quereza Moreira Jacob vai estrear de forma oficial no próximo dia 1º de novembro, Dia de Todos os Santos.
O “documentário”, considerado uma blasfêmia por religiosos, conta com a atuação de pessoas trans e busca, nas palavras da diretora, “promover uma releitura da vivência do Marino, o resgate de uma vivência que foi invisibilizada”. Ao final da obra, Leide aponta que “em respeito ao nome social, a Santa é ressignificada em Santo”.
Obra teve recursos públicos
O filme da “santa trans” foi custeado com recursos dos contribuintes paulistas. Inscrito em 2020 em um edital da então Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo para o financiamento da produção de curtas, o filme foi contemplado com o financiamento após ter ficado entre os suplentes na avaliação inicial. De acordo com o edital, o valor destinado aos aprovados seria de R$ 100 mil por projeto.
A obra é co-produzida pela Filmes de Abril.
A Gazeta do Povo procurou a secretaria pedindo esclarecimentos sobre quais são os critérios de avaliação dos projetos inscritos nos editais culturais. O pedido de entrevista, porém, não foi respondido até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto para manifestações.
A verdadeira história de Santa Marina
Filha única, Marina nasceu no Líbano, no século VI. Sua mãe faleceu quando ainda era uma criança. O pai Eugênio a educou na fé cristã e quando Marina já era jovem, contou seu sonho de se tornar um monge. A decisão do pai deixou Marina triste pelo afastamento definitivo, pois mulheres não podiam entrar no mosteiro.
Procurando uma maneira de ficar perto do pai, Marina teve a ideia de também ir para o mosteiro, mas vestida como homem. Eugênio aceitou a proposta da filha. Dessa forma, cortou os cabelos e se disfarçou de homem, e passou a ser chamada de “Marino”. Ela prometeu ao pai que iria guardar sua virgindade e oferecê-la a Deus na vida religiosa. Com isso, pai e filha ingressaram no mosteiro.
Com o tempo, Marina progredia nas virtudes e na vida de oração. Os outros monges nunca desconfiaram que “Marino” fosse uma mulher. Os religiosos relacionavam a falta de características masculinas e a delicadeza da voz à vida de oração de Marina, com jejuns e penitências. Já após dez anos, seu pai faleceu.
Entretanto, um dia, o abade do mosteiro enviou “Marino” e outros três monges em uma viagem e ficaram hospedados em uma pousada. No lugar, havia um soldado romano oriental. Esse rapaz seduziu a filha do guardião da pousada e tirou a virgindade da moça. Com isso, ela engravidou. Para esconder o fato, eles combinaram de falar que havia sido o monge Marino quem fez isso.
Mesmo sendo inocente, Marina não se defendeu, pois havia prometido para o pai nunca revelar que era mulher. Após ter sido expulsa, Marina ainda cuidou do bebê por um tempo e viveu às portas do mosteiro. O abade, vendo o sofrimento de “Marino”, aceitou-a novamente como monge, mas impôs os serviços mais pesados e humilhantes como uma forma de pagar pelos pecados. Com tantos trabalhos pesados e jejuns, Marina faleceu.
No momento da preparação para o sepultamento, os monges descobriram que “Marino” era uma mulher e que, consequentemente, era inocente. Os religiosos se arrependeram por tratarem mal uma pessoa inocente. Santa Marina, celebrada no dia 18 de junho, é conhecida na Igreja Católica como uma intercessora nas dificuldades, doenças e calúnias.
Padre Júlio Lancellotti participou como narrador do filme da “santa trans”
Além dos “artistas transmasculines”, como definido pela diretora, o curta também teve a participação do padre Júlio Lancellotti. Segundo os idealizadores da obra, o padre narrou exatamente a história publicada pela paróquia de Santa Marina, onde algumas das cenas do curta foram gravadas – que nada tem de identificação transgênero por parte da santa.
Ainda assim, em um malabarismo cognitivo, Leide cita a escritora Simone de Beauvoir, conhecida por defender pedófilos e genocidas, para afirmar que a santa era uma pessoa trans e “se reconhecia como homem”. “Não que seja um fator necessário o reconhecimento dos outros, mas ele também tinha a sua identidade masculina reconhecida por todos os monges. Só não sabiam que se tratava de um corpo com vagina”, escreveu.
Em nota, publicada em 2022 após as gravações e republicada agora em virtude do lançamento oficial do filme, a Arquidiocese de São Paulo repudia a narrativa apresentada no filme. Para a entidade, o curta “não condiz com a realidade sobre a vida de Santa Marina, venerada pelos católicos”.
“A história dos santos deve ser melhor conhecida, e não pode ser interpretada à luz de ideologias que em nada correspondem com o contexto em que viveram, tampouco com os valores por eles testemunhados ao longo de suas vidas”, destaca a nota.
Em relação à narração feita pelo padre Júlio Lancellotti no filme que mostra a “santa trans”, o texto da arquidiocese aponta que “seu conteúdo não fundamenta qualquer abordagem diferente daquela reconhecida pela Igreja Católica”. A nota rejeita qualquer pretensão de modificar a história de vida de Santa Marina.
Na época do fim das filmagens do curta, a Gazeta do Povo entrou em contato com Lancellotti questionando a participação dele no filme. Em resposta, o padre disse “a nota da arquidiocese é a última palavra”. A reportagem procurou Lancellotti novamente, mas ele não respondeu os contatos.
Fiéis vão realizar um ato de reparação
Os fiéis da Paróquia Coração Eucarístico de Jesus e Santa Marina, onde o curta foi gravado, estão organizando um ato de desagravo em nome da religiosa. A cerimônia está marcada para o dia 1º de novembro, às 9h, mesmo dia de lançamento oficial do filme.
“Rezar o Santo Rosário foi a forma que encontramos para reparar os danos cometidos por essas pessoas à memória de Santa Marina. A história dela é amplamente documentada nas igrejas do Ocidente e do Oriente há séculos e nunca houve qualquer tipo de dúvida a esse respeito”, diz o catequista Luiz Carlos de Arruda Leite.
Paróquia não foi alertada sobre conteúdo do filme antes das gravações
A reportagem entrou em contato com a diretora do filme solicitando uma entrevista por telefone, o que foi negado por Leide. Por e-mail, porém, ela confirmou que o roteiro que retrata Santa Marina como uma pessoa trans não foi apresentado à paróquia antes das gravações. Ela também confirmou o financiamento público da obra, mas não disse qual foi o valor efetivamente recebido dos cofres públicos.
Sobre a escolha de Santa Marina como tema do filme, a diretora limitou-se a dizer que o motivo foi “a vivência singular que marca essa história”. Questionada sobre as críticas em relação à forma como a religiosa é mostrada na obra, Leide respondeu que “gerar discussões é uma das funções da arte”.
“No filme São Marino damos visibilidade à forma como essa história é ressignificada a partir da vivência de cinco homens transmasculines. A arte tem como uma de suas funções gerar discussões, debates, contribuir com o desenvolvimento social. As reações dos fiéis, elogios, críticas e diferentes pontos de vista fazem parte do processo”, completou.
Matéria: Gazeta do Povo






