a perseguição aos cristãos no século 21

A palavra “cristofobia” designa o ódio, a discriminação ou a violência praticada contra pessoas ou comunidades cristãs em razão de sua fé. Trata-se de um fenômeno que, embora frequentemente silenciado pela grande mídia, é hoje a principal forma de perseguição religiosa no mundo. Segundo Daniel Chagas Torres, em seu excelente livro A cristofobia no século XXI, 3 em cada 4 atos de intolerância religiosa globais são dirigidos a cristãos. Essa realidade, que ele chama de “a escolha de consciência mais mortal da atualidade”, desafia a consciência moral do século 21 e exige reflexão e ação.
O conceito de “cristofobia”
Vivemos em uma era que se orgulha de promover a tolerância, o respeito à diversidade e o combate a toda forma de preconceito. Termos como “islamofobia” e “homofobia” tornaram-se comuns no vocabulário público e acadêmico, numa tentativa de buscar reconhecimento e segurança. No entanto, como destaca Torres, pouco ou quase nada se fala da cristofobia, mesmo sendo o cristianismo a fé mais perseguida do planeta. O autor propõe, portanto, resgatar o equilíbrio ético: se toda discriminação é moralmente condenável, também deve ser denunciado o preconceito contra os cristãos.
A cristofobia não se restringe a um único tipo de agressão. Ela se manifesta desde a violência letal e sistemática em países autoritários e teocráticos na África, Oriente Médio e Ásia até as formas sutis e institucionais de exclusão que ocorrem em sociedades ocidentais. O fenômeno, portanto, deve ser compreendido tanto sob o aspecto da perseguição física e direta, como assassinatos, torturas, prisões e destruição de igrejas, quanto sob o da perseguição cultural e simbólica, pela marginalização da fé cristã, ridicularização de seus símbolos e exclusão do debate público.
A dimensão global da perseguição
Os números apresentados por Torres são alarmantes. Com base em dados do sociólogo Massimo Introvigne e de relatórios de instituições como a Portas Abertas e o Pew Research Center, o autor afirma que 75% de toda perseguição religiosa no mundo tem como alvo os cristãos. Apenas em 2024, segundo o relatório de 2025 da Portas Abertas, 4.476 cristãos foram mortos por causa de sua fé, sobretudo na África – uma média de 12 por dia.
Pouco ou quase nada se fala da cristofobia, mesmo sendo o cristianismo a fé mais perseguida do planeta
Atualmente, cerca de 380 milhões de cristãos enfrentam altos níveis de perseguição e discriminação – um aumento de 15 milhões em relação a 2023. Isso significa 1 em cada 7 cristãos no mundo; 1 em 5 na África, 2 em 5 na Ásia e 1 em 16 na América Latina. O número de países classificados com perseguição “extrema” ou “muito alta” chegou a 60 (contra 55 em 2023 e apenas 23 em 2015). A lista dos 50 piores países para os cristãos na World Watch List destaca nações como Coreia do Norte (1.º), Somália (2.º), Líbia (3.º), Eritreia (4.º) e Sudão (5.º). A África Subsaariana permanece como o principal epicentro da violência, concentrando 8 dos 10 países mais letais.
Esses dados ganham força quando se observam exemplos concretos. No Oriente Médio e na África, comunidades inteiras foram dizimadas por grupos extremistas como o Estado Islâmico e o Boko Haram. No Egito, cristãos coptas foram alvejados durante protestos pacíficos. Na Coreia do Norte, apenas possuir uma Bíblia é crime punido com prisão e morte. No Paquistão, casos como o de Asia Bibi, condenada à morte por professar publicamente sua fé, ilustram o custo de seguir a Cristo em contextos de intolerância extrema.
A cristofobia, contudo, não se limita ao Oriente. No Ocidente, ela assume formas mais sutis, mas igualmente corrosivas. Torres menciona o fanatismo secularista que confunde a saudável laicidade do Estado com o laicismo militante, tentando expulsar símbolos e expressões cristãs do espaço público. A demissão de uma funcionária britânica por usar uma cruz no pescoço é exemplo emblemático dessa intolerância institucional. Juntam-se a isso o escárnio midiático e o viés ideológico de setores acadêmicos que marginalizam a visão cristã do mundo. O autor, citando Rupert Shortt em Christianophobia: A Faith Under Attack, considera que essa combinação de hostilidade cultural, política e intelectual constitui uma nova forma de perseguição – uma “descristianização planejada” do Ocidente.
O silêncio cúmplice da mídia
Um dos pontos mais fortes do primeiro capítulo de A cristofobia no século XXI é a denúncia do silêncio midiático. Torres demonstra, com base no pesquisador francês René Guitton, que há uma assimetria sistemática na cobertura das tragédias religiosas. Quando muçulmanos são vítimas de ataques, a imprensa internacional reage com ampla indignação e cobertura intensa; quando as vítimas são cristãs, os fatos são tratados como “conflitos étnicos” ou “disputas políticas”. Assim, o componente religioso é omitido, e a cristofobia permanece invisível.
Guitton cita dois episódios ilustrativos: os atentados em Bombaim, em 2008, amplamente noticiados, e o massacre de mais de 300 cristãos na Nigéria, ocorrido no mesmo período e praticamente ignorado. Alexandre del Valle, professor de Geopolítica na França, chamou essa distorção de “mercado da vitimologia”, no qual certas vítimas “valem mais” que outras. O genocídio de 2 milhões de cristãos no Sudão do Sul, lembra o autor, recebeu muito menos atenção que o de Darfur, onde morreram cerca de 300 mil muçulmanos. Essa desproporção revela um viés cultural que relativiza o sofrimento cristão e reforça a indiferença internacional.
As fontes da perseguição
Torres identifica três grandes fontes da cristofobia contemporânea, inspirando-se no livro Persecuted: The Global Assault on Christians, de Paul Marshall, Lela Gilbert e Nina Shea: a perseguição patrocinada pelo Estado, comum em regimes totalitários como a Coreia do Norte, a China, o Vietnã e o Irã, onde o cristianismo é visto como ameaça política; a hostilidade social, expressa por multidões e comunidades locais que agem impunemente contra cristãos, como ocorre na Nigéria ou no Paquistão; e a ação de grupos terroristas, como o Talibã e o Boko Haram, que fazem do extermínio de cristãos parte de sua ideologia religiosa e política.
Essas três fontes frequentemente atuam juntas, criando contextos de violência sistêmica. O caso de Anna, menina cristã de 12 anos sequestrada e violentada no Paquistão em 2012, é exemplar: houve omissão do Estado, conivência policial e cumplicidade social com os agressores. Esse entrelaçamento mostra que a cristofobia não é um evento isolado, mas uma estrutura de opressão complexa, na qual poder político, fanatismo religioso e indiferença social convergem para aniquilar a liberdade de fé.
A desinformação e o “espantalho do antiocidentalismo”
Um dos aspectos mais perversos da perseguição é o uso de estereótipos históricos. Muitos grupos nacionalistas ou extremistas associam o cristianismo ao imperialismo ocidental e ao homem branco europeu, transformando comunidades locais milenares em alvos de ódio. O autor compara essa ideologia ao “espantalho” criado para justificar a violência: uma caricatura falsa que permite legitimar massacres sob o pretexto de combater o colonialismo.
A combinação de hostilidade cultural, política e intelectual constitui uma nova forma de perseguição – uma “descristianização planejada” do Ocidente
Torres recorda que muitas comunidades cristãs hoje perseguidas são mais antigas que o próprio Islã, como os coptas do Egito, que remontam ao evangelista Marcos, e os cristãos da Índia, cuja tradição se vincula ao apóstolo Tomé. Em lugares como a Síria e o Iraque, existem vilas que ainda falam aramaico, a língua de Jesus, hoje ameaçada de extinção pelo avanço de grupos jihadistas. A cristofobia, nesse sentido, não destrói apenas vidas, mas apaga memórias, línguas e culturas milenares.
Dados e organizações de monitoramento
No primeiro capítulo, o autor apresenta diversas fontes e instituições que documentam a realidade da perseguição cristã. O livro Persecuted e o sociólogo Massimo Introvigne estimam que, desde o ano 2000, cerca de 200 milhões de cristãos vivem sob algum tipo de ameaça. Em 2012, a então chanceler alemã Angela Merkel afirmou publicamente que o cristianismo é “de longe a religião mais perseguida do mundo”. A situação, contudo, agravou-se ainda mais a partir de 2015. Segundo a Portas Abertas, mais de 380 milhões de cristãos vivem hoje sob risco contínuo, enquanto a fundação pontifícia Ajuda à Igreja que Sofre confirma que 75% de toda perseguição religiosa mundial é dirigida a cristãos.
Essas organizações, evangélica e católica, oferecem uma imagem impressionante da amplitude do problema. O ranking mundial da perseguição da Portas Abertas lista anualmente os 50 países mais hostis ao cristianismo. Já a Ajuda à Igreja que Sofre, cujo serviço repercute em mais de 140 países, divulga relatórios detalhados sobre violações à liberdade religiosa, incluindo destruição de templos, conversões forçadas e prisões arbitrárias. Essas entidades não apenas denunciam, mas prestam auxílio espiritual e material a comunidades devastadas pela intolerância.
A cristofobia ocidental e o relativismo moral
Embora o Ocidente não enfrente perseguições sangrentas, Torres argumenta que ele vive uma descristianização progressiva, movida por um “fanatismo laicista” e por um “relativismo moral totalitário”. Ele cita o conceito de “democracia totalitária” de J. L. Talmon para descrever sociedades que, em nome da liberdade e da igualdade, impõem a censura à fé. Nelas, símbolos cristãos são removidos de escolas e repartições públicas, orações são proibidas em eventos oficiais, e opiniões baseadas em princípios cristãos são rotuladas como “discurso de ódio”.
Essa hostilidade disfarçada de neutralidade representa, segundo o autor, uma das faces mais perigosas da cristofobia contemporânea. Ao mesmo tempo em que se proclama defensora dos direitos humanos, a cultura ocidental nega o direito fundamental de manifestar publicamente a fé cristã. Trata-se, portanto, de uma perseguição civilizada, mas não menos real.
Um chamado à consciência e à ação
Torres conclui o capítulo com um apelo duplo: à solidariedade e à informação. É dever dos cristãos – e de todos os defensores da liberdade – conhecer e divulgar o sofrimento das comunidades perseguidas. O silêncio, diz ele, é cúmplice da violência. Mais que um diagnóstico, o autor propõe um caminho de engajamento: unir católicos e protestantes, orar, denunciar e apoiar organizações que atuam na defesa dos direitos humanos e da liberdade religiosa. De forma lúcida e realista, ele afirma:
“Sou católico. Mas desejo agora falar especialmente para você, irmão protestante. […] É lógico que temos interpretações doutrinárias distintas e, por vezes, irreconciliáveis. Entretanto, deixemos nossas diferenças para nossas atividades de evangelização […]. No campo político, nossa aliança nunca foi tão necessária como agora. Falo isso porque aqueles que odeiam o cristianismo não fazem a menor distinção sobre qual igreja pertencemos. Eles matam, torturam, difamam, discriminam sem fazer a menor distinção de igrejas. Para eles, pouco importa se é Igreja Católica, Igreja Protestante, Igreja Ortodoxa, Igreja Copta, Igreja Grega etc. Nesse aspecto, somos todos alvos, sem a menor distinção por parte de grupos terroristas, de multidões enfurecidas, de Estados perseguidores.”
Enquanto se multiplicam discursos de tolerância e diversidade, cresce o ódio contra o cristianismo – justamente a fé que mais contribuiu para os conceitos modernos de pessoa, liberdade e dignidade
A cristofobia, portanto, não é apenas um problema religioso, mas um desafio civilizacional. Quando uma sociedade se cala diante da perseguição de milhões de pessoas por causa de sua fé, ela compromete o próprio ideal de dignidade humana. O sangue dos mártires, recorda Torres, continua a ser semente de novas vocações e testemunho da verdade do Evangelho.
Um chamado à vigilância
O estudo da cristofobia revela uma contradição moral de nossa época: enquanto se multiplicam discursos de tolerância e diversidade, cresce o ódio contra o cristianismo – justamente a fé que mais contribuiu para os conceitos modernos de pessoa, liberdade e dignidade. A análise de Daniel Chagas Torres demonstra que a perseguição aos cristãos não é um eco distante da Antiguidade, mas um drama vivo do século 21, alimentado por ideologias políticas, fanatismos religiosos e uma crescente indiferença cultural.
Denunciar essa realidade não é vitimismo, mas fidelidade à verdade. Ignorá-la é perpetuar a injustiça. Como ensinou João Crisóstomo, que foi arcebispo de Constantinopla: “Ninguém pode ser ferido pelas perseguições, a não ser aquele que se afasta de Deus”. Assim, cada mártir, visível ou esquecido, proclama que a fé cristã permanece inquebrantável mesmo sob o açoite do ódio, e que, para muitos, crer ainda significa enfrentar a morte com esperança.
Matéria: Gazeta do Povo





