Povos da Amazônia têm de ser evangelizados, diz papa Leão XIV a bispos

O boletim da Sala de Imprensa da Santa Sé trouxe nesta segunda-feira o texto de um telegrama enviado pelo cardeal Secretário de Estado, Pietro Parolin, em nome do papa Leão XIV, aos bispos da Amazônia, reunidos na Colômbia. Destaco dois pontos. O primeiro é um tabefe na cara de muitos teólogos e mesmo autoridades católicas que insistem em não evangelizar os indígenas:
“É necessário que Jesus Cristo, em quem se recapitulam todas as coisas (cf. Ef 1,10), seja anunciado com clareza e imensa caridade entre os habitantes da Amazônia, de tal forma que temos de nos esforçar por lhes dar o pão fresco e límpido da Boa Nova e o alimento celeste da Eucaristia, único meio para ser verdadeiramente o Povo de Deus e o Corpo de Cristo.”
É um parágrafo que dá continuidade ao que pediu o papa Francisco na exortação Querida Amazônia, especialmente nos parágrafos 62 a 65: “Não renunciamos à proposta de fé que recebemos do Evangelho. Embora queiramos empenhar-nos lado a lado com todos, não nos envergonhamos de Jesus Cristo. Para quantos O encontraram, vivem na sua amizade e se identificam com a sua mensagem, é inevitável falar d’Ele e levar aos outros a sua proposta de vida nova”, afirmou Francisco, acrescentando que “a autêntica opção pelos mais pobres e abandonados, ao mesmo tempo que nos impele a libertá-los da miséria material e defender os seus direitos, implica propor-lhes a amizade com o Senhor que os promove e dignifica” e que “eles têm direito ao anúncio do Evangelho”. Para não ficar nenhuma dúvida, Francisco ainda afirmou que “nem podemos contentar-nos com uma mensagem social” e que “sem este anúncio apaixonado, cada estrutura eclesial transformar-se-á em mais uma ONG e, assim, não responderemos ao pedido de Jesus Cristo”.
“É necessário que Jesus Cristo, em quem se recapitulam todas as coisas (cf. Ef 1,10), seja anunciado com clareza e imensa caridade entre os habitantes da Amazônia.”
Trecho de telegrama enviado pelo cardeal Pietro Parolin, em nome do papa Leão XIV, aos bispos da Amazônia.
Mas não é só: Leão XIV, por meio do cardeal Parolin, ainda diz que:
“Não menos evidente é o direito e o dever de cuidar da ‘casa’ que Deus Pai nos confiou como administradores solícitos, de modo que ninguém destrua irresponsavelmente os bens naturais que falam da bondade e beleza do criador, nem, muito menos, se submeta a eles como escravo ou adorador da natureza, pois as coisas nos foram dadas para alcançarmos o nosso objetivo de louvar a Deus e, assim, obter a salvação de nossas almas.”
Este tema também aparece nos escritos “ambientais” dos papas Bento XVI e, especialmente, Francisco: cuidar da natureza é nossa obrigação, mas jamais se esquecendo de nossa posição especial dentro da criação. Na Laudato Si’, o papa Francisco afirma que:
“Isto [a ideia de que “nós e todos os seres do universo, sendo criados pelo mesmo Pai, estamos unidos por laços invisíveis e formamos uma espécie de família universal”] não significa igualar todos os seres vivos e tirar ao ser humano aquele seu valor peculiar que, simultaneamente, implica uma tremenda responsabilidade. (…) Às vezes nota-se a obsessão de negar qualquer preeminência à pessoa humana, conduzindo-se uma luta em prol das outras espécies que não se vê na hora de defender igual dignidade entre os seres humanos.” (p. 89-90)
É por isso que eu gostei demais da escolha da primeira leitura da nova “missa para o cuidado da criação”: o senso comum recomendaria algum relato do Gênesis, mas, em vez disso, temos o livro da Sabedoria, que diz:
“São insensatos por natureza todos os que desconheceram a Deus e, através dos bens visíveis, não souberam conhecer aquele que é, nem reconhecer o artista, considerando suas obras. Tomaram o fogo, ou o vento, ou o ar agitável, ou a esfera estrelada, ou a água impetuosa, ou os astros dos céus, por deuses, regentes do mundo. Se tomaram essas coisas por deuses, encantados pela sua beleza, saibam, então, quanto seu Senhor prevalece sobre elas, porque é o criador da beleza que fez essas coisas.”
Só posso imaginar o choro e ranger de dentes entre os membros mais radicais do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). E, antes que alguém questione a evangelização dos indígenas, recomendo o excelente texto do meu amigo Guilherme de Carvalho sobre o assunto.
O Vaticano no meio de mais um escândalo financeiro?
É sabido – porque a informação veio do próprio Vaticano – que as finanças da Igreja estiveram presentes nas discussões dos cardeais que antecederam o conclave de maio deste ano. Se isso foi um fator importante na escolha por Robert Prevost, já não se sabe. Mas é certo que Leão XIV tem um enorme problema para resolver, herdado do pontificado de Francisco (mas não por causa do pontífice argentino, e sim apesar dos esforços dele): botar ordem em um sistema aparentemente cheio de buracos e potencialmente suscetível à ação de gente mal-intencionada.
No fim de julho, um tribunal vaticano rejeitou pela segunda vez os argumentos do ex-auditor Libero Milone, que processava a Secretaria de Estado pelo que considerou uma demissão abusiva. Milone, com décadas de carreira bem-sucedida na Deloitte, chegou ao Vaticano em 2015 para passar o pente-fino nas finanças locais, mas foi forçado a renunciar em 2017 pelo então arcebispo (hoje cardeal) Angelo Becciu – sim, aquele um, condenado por corrupção em 2023 no caso do prejuízo causado por negócios envolvendo um imóvel em Londres. Milone tinha sido trazido pelo cardeal George Pell, primeiro prefeito do Secretariado para a Economia, mas em 2017 Pell estava ocupado demais defendendo-se de uma acusação mentirosa de abuso sexual na Austrália (que, mesmo assim, o levou à prisão por alguns anos) e não tinha como enfrentar Becciu e outros que queriam se livrar do auditor – Becciu chegou a se gabar de ter colocado Milone para correr.
Dias atrás, uma notícia em específico furou a bolha das publicações especializadas na Igreja, sendo divulgada – com mais ou menos sensacionalismo – em todo canto: que pessoas dentro da Administração do Patrimônio da Sé Apostólica (Apsa, que não é a mesma coisa que o Instituto para Obras Religiosas, popularmente conhecido como “Banco do Vaticano”) tinham uma chave com a qual podiam alterar informações relevantes de transações bancárias feitas pelo sistema SWIFT. Essa informação veio do próprio Milone, na sequência da divulgação de um memorando do cardeal Pell, datado de 2016, pedindo ao auditor que investigasse “transações processadas de forma que se pudesse esconder a verdadeira identidade do remetente dos fundos”, transferências essas que seriam “potencialmente ilegais”, por abrirem as portas para possível lavagem de dinheiro e sabe-se lá que outros tipos de fraude.
Várias dessas reportagens ressaltam que especialistas no SWIFT afirmam ser impossível fazer esse tipo de alteração. Milone estaria blefando, furioso com suas derrotas nas cortes vaticanas? Mas por que ele faria uma alegação falsa, com potencial para desacreditá-lo totalmente? São muitas perguntas e zero respostas; isso é algo que terá de ser investigado, até porque o histórico recente do Vaticano com dinheiro não é dos melhores. E nem falo dos escândalos do IOR nos anos 80; falo de quando, em 2013, a Cidade do Vaticano foi desligada do sistema eletrônico de pagamentos pelas autoridades bancárias europeias, por falta de transparência e de medidas para evitar lavagem de dinheiro. Por um mês e meio, nem funcionários nem turistas conseguiam pagar nada com cartão no Vaticano (incluindo os Museus Vaticanos), nem sacar dinheiro em caixas eletrônicos dentro da cidade-Estado. Imaginem isso acontecendo de novo…
Por que isso importa? É o tipo de assunto árido, muito distante daquilo que faz a cobertura tradicional de assuntos da Igreja – as nomeações, os documentos, o que o papa diz ou deixa de dizer, as controvérsias doutrinais ou litúrgicas –, mas que também faz diferença. Sanguessugas drenam não só o dinheiro do qual a Igreja precisa, mas também a credibilidade do Vaticano e os esforços de pessoas que poderiam estar empenhadas na missão evangelizadora da Igreja, mas precisam passar os dias caçando fraudadores; o próprio cardeal Pell, um homem de grande ortodoxia, firme na defesa da vida e da família, acabou sendo um desses casos, pois sabe Deus o bem que ele teria feito se pudesse ter assumido algum outro cargo em vez de “chefão financeiro” do Vaticano. Nas suas orações pelo papa, caro leitor, não se esqueça de pedir a Deus que livre Leão XIV dos aproveitadores, daqueles que só buscam o benefício próprio enquanto dizem querer o bem da Igreja.
E, por fim, uma dica: quem tem feito o melhor jornalismo a respeito desse assunto é Ed Condon, um dos editores do site The Pillar. Ele acompanha o caso de Milone desde o começo, já conversou com muita gente que trabalhou com o auditor e com o cardeal Pell no Secretariado para a Economia, acompanhou os julgamentos, e diz que outras fontes confirmaram não só que a Apsa realmente tem a tal chave para alterar dados, como também que ela foi usada. A sua hipótese? A de que a Secretaria de Estado apostou que Milone (se ele é católico, eu não sei) seria bonzinho o suficiente para não botar o Vaticano numa fria jogando tudo no ventilador. Ainda veremos muita água rolando embaixo dessa ponte.
Matéria: Gazeta do Povo





