a primeira viagem do Papa

Era uma visita que ele havia herdado. Antes de sua morte, o Papa Francisco planejava viajar para a Turquia para celebrar o 1700º aniversário do Concílio de Niceia e, estando lá, visitar o Líbano, um país gravemente afetado pelo terrorismo, pela desunião e pela corrupção.
Como em todos os outros assuntos, Leão XIV procurou cumprir os desejos de seu antecessor. Havia grande expectativa para ver como o novo Papa se sairia em sua primeira viagem apostólica — uma viagem de profundo significado teológico e pastoral e que, segundo aqueles que puderam acompanhá-lo de perto, pode ser considerada um sucesso, além de uma oportunidade para conhecer melhor o Pontífice recém-eleito.
Primeira parada: Turquia. Ecumenismo e um projeto para 2033
A jornada começou na Turquia, onde os cristãos representam apenas 1% de uma população de 88 milhões, a maioria dos quais muçulmanos. Os católicos somam apenas 33.000.
Apesar de sua pequena população, a Turquia pode se orgulhar de ser um território visitado pelos Papas: Paulo VI, João Paulo II, Bento XVI e Francisco percorreram esse país, ponte entre o Oriente e o Ocidente.
Os eventos celebrados pelo Papa na Turquia foram pautados pelo desejo de unidade cristã. Esse desejo refletiu-se na declaração conjunta que Leão XIV assinou com o Patriarca Ecumênico de Constantinopla, Bartolomeu I, durante um dos momentos mais significativos da viagem. Embora possa parecer um detalhe menor, o texto incentiva — entre outras coisas — a continuidade dos esforços para encontrar soluções que permitam a todos os cristãos celebrar a Páscoa na mesma data.
De fato, esse desejo de unidade também marca o que pode ser o primeiro projeto pessoal do Papa Leão XIV, ao expressar sua vontade de celebrar com todas as Igrejas cristãs o bimilésimo aniversário da ressurreição de Jesus Cristo em Jerusalém, em 2033. Uma meta ambiciosa, mas para a qual, como ele ressaltou, “temos oito anos para nos prepararmos”.
Unidade também com os muçulmanos… mesmo que não houvesse oração na mesquita
Embora o principal objetivo da viagem fosse comemorar o Primeiro Concílio e restaurar o entendimento entre os cristãos, a visita do Papa também serviu para fortalecer os laços com os muçulmanos. “Embora o objetivo primordial fosse o diálogo com os ortodoxos”, observa o especialista em Vaticano Javier Martínez-Brocal, que acompanhou Leão XIV na viagem, “o Papa ficou surpreso com a cordialidade e as possibilidades de colaboração com os muçulmanos. No Líbano, por exemplo, os problemas sociais afetam a todos, e foi bonito ver como os muçulmanos foram às ruas para receber o Papa e acompanhá-lo.”
O Papa voltou a associar a paz à conversão pessoal e, nesse sentido, sua mensagem para evitar a todo custo o uso da religião como arma de divisão e conflito é muito coerente
Em Istambul, o Papa visitou a Mesquita Azul com o muezim Tunca, em um clima de respeito. No entanto, Leão XIV — diferentemente de seus antecessores — recusou-se a rezar, preferindo continuar sua visita à mesquita. Foi um gesto de independência — mais um — que gerou diversas interpretações: para alguns, clareza doutrinal; para outros, deferência diplomática. Provavelmente ambos. A realidade é que, embora alguns veículos de comunicação tenham tentado fomentar controvérsia, a conexão humana demonstrada entre os dois líderes dissipou rapidamente qualquer tensão remanescente.
A paz, outra protagonista importante
Juntamente com a unidade, a paz foi outro tema central nos discursos de Leão XIV, nos quais ele enfatizou repetidamente o papel da Santa Sé não como agente político, mas como intermediária nos diversos conflitos que afetam a região. O Papa reafirmou o apoio do Vaticano à solução de dois Estados, expressou a amizade da Santa Sé para com Israel e, mais uma vez, ofereceu os serviços do Vaticano como mediador.
Em todas essas questões diplomáticas, e em uma região que é um barril de pólvora, muitos analistas elogiaram a prudência do Papa. Ele fez vários apelos enfáticos para que Israel cesse seus ataques, mas demonstrou igual firmeza ao pedir ao Hezbollah que se desarme. Além disso — e este é um tema recorrente — o Papa voltou a associar a paz à conversão pessoal e, nesse sentido, sua mensagem para evitar a todo custo o uso da religião como arma de divisão e conflito é muito coerente.
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No Líbano: um jovem Papa em sintonia com os jovens
Ao contrário da Turquia, o Líbano possui uma forte comunidade católica. De fato, embora ainda sejam minoria — estimada em 25% da população —, é o país do Oriente Médio com o maior número de católicos. Para eles, a visita de Leão XIV teve um efeito terapêutico. “Os libaneses são um povo entusiasmado e vêm sofrendo as consequências da política internacional nas áreas vizinhas e em seu próprio país há muitos anos”, observa Helene Daboin, jornalista radicada no Líbano. “O fato de uma autoridade internacional como o Papa ter vindo e os tratado com respeito, ouvindo atentamente seu sofrimento e rezando com e por eles de forma tão visível, foi um bálsamo para a sua situação atual.”
O padre Joseph Malkoun, vigário de uma das principais igrejas maronitas em Beirute, destaca o impacto potencial da viagem: “O Líbano cristão, assim como as igrejas cristãs no Oriente Médio, não passam de uma sombra do que foram um dia durante várias décadas. Tornaram-se um deserto no qual o Papa veio clamar, lembrando-nos de que devemos redescobrir o caminho do Senhor, trilhá-lo e proclamar o Evangelho.”
E se alguém pode trilhar esse caminho com força, são os jovens, a quem o Papa pediu — na grande reunião em Bkerké — que sejam a força vital de um país que precisa de mudança: “Vocês têm tempo. Vocês têm mais tempo para sonhar, se organizar e fazer o bem. Vocês são o presente, e o futuro já está sendo construído em suas mãos.”
“Fiquei impressionado com o diálogo que ele teve conosco, porque revela que ele quer prestar contas de suas decisões e não se esquiva de dar explicações”
Javier Martínez-Brocal, especialista do Vaticano presente na viagem
Daboin destacou a impressão que a energia do Papa lhe causou durante aquele encontro. “Alguém disse que tivemos a sorte de ser o primeiro país que o Papa visitou ainda jovem. O Líbano tem quatro sedes patriarcais: católica maronita, greco-melquita, católica siríaca e católica armênia, além das autoridades civis das diferentes religiões. Em outras palavras, foi uma visita repleta de protocolos, idiomas e assim por diante. Quando chegou para o encontro com os jovens, o Papa devia estar muito cansado, mas, quando começou a falar, mostrou-se incrivelmente forte e enérgico, com um sorriso largo e, ao mesmo tempo, cheio de vida, como se quisesse compartilhar seu entusiasmo pela nossa fé com os jovens. Acho que foi um dos melhores momentos da viagem.”
Agitação no porto de Beirute
Se houve um momento particularmente comovente durante a visita do Papa ao Líbano, foi sem dúvida sua oração no porto de Beirute, onde lembrou a terrível tragédia de 2020 que deixou mais de 200 mortos, 7.000 feridos e mais de 300.000 casas destruídas. Essa tragédia resume perfeitamente a negligência e a inação do governo libanês: o material que explodiu no porto estava lá havia sete anos sem as medidas de segurança necessárias. Hoje, cinco anos após a tragédia, ninguém foi responsabilizado, e o porto permanece rodeado de escombros.
Leão XIV rezou em silêncio por alguns instantes, cumprimentou setenta familiares das vítimas e até se ajoelhou para consolar uma criança que carregava uma fotografia do pai, morto na explosão. “Foi uma oração silenciosa”, explica Martínez-Brocal, “que ecoou por todo o Líbano, que clama por justiça.”
Antonio Mikhael, um engenheiro libanês, destaca outro momento emocionante da visita: “Fiquei impressionado com a visita do Papa ao Santuário de São Mauron para visitar o túmulo de São Charbel, o grande santo do Líbano, algo que não havia acontecido em visitas papais anteriores.”
O padre Joseph Malkoun resumiu sua impressão do novo Papa durante esses encontros: “Ele é genuinamente simples, humilde e pobre. Ele não finge ser; ele é. E é lúcido, perspicaz, discernente e corajoso o suficiente para fazer o que precisa ser feito, sem teatralidades ou provocações. Acredito que ele está mais preocupado com a Igreja e com a paz do que com suas próprias ideias ou estilo pessoal.”
Com jornalistas: nada de manchetes sensacionalistas, mas com respostas
Entre os especialistas do Vaticano, observa-se que Leão XIV goza do favor dos fiéis, mas não tanto do da mídia. Francisco era uma máquina de gerar manchetes, enquanto o estilo sereno de Leão XIV oferece menos material para a imprensa. Ao contrário de seu antecessor, Leão XIV adere aos textos e raramente improvisa. No entanto, especialmente na conferência de imprensa no final da viagem, o Papa revelou um pouco mais de seu lado pessoal. Falou de seu desejo de se aposentar há alguns anos, descreveu sua reação quando viu a possibilidade de ser nomeado para o papado (“Respirei fundo e disse: aqui estamos, Senhor, tu és o chefe, tu guias o caminho”) e até mencionou aos jornalistas o título de um livro que define sua espiritualidade: A Prática da Presença de Deus, do Irmão Lourenço.
Em um ambiente descontraído e mais informal, o Papa aludiu à ideia recorrente na mídia e nas redes sociais de que seu rosto é muito expressivo e reconheceu que acha engraçado como os jornalistas interpretam seus gestos. “É interessante; às vezes vocês me dão ótimas ideias, porque acham que conseguem ler meus pensamentos ou meu rosto… e nem sempre acertam.”
Essa abertura foi bem recebida pelos jornalistas: “Fiquei impressionado com o diálogo que ele teve conosco”, destaca Martínez-Brocal, “porque revela que ele quer ser responsabilizado por suas decisões e não se esquiva de dar explicações. Acho que é uma boa notícia que ele tenha concordado em dar entrevistas e responder a perguntas.”

Duolingo, o novo arianismo, os direitos das mulheres em um país islâmico e a África no horizonte
O multilinguismo do Papa Leão XIV tem sido amplamente discutido nos últimos dias, especialmente nas redes sociais. Na Turquia, ele proferiu seus discursos em inglês; no Líbano, usou o francês; em coletivas de imprensa, alternou entre italiano, espanhol e inglês; e chegou até a cumprimentar pessoas em turco e árabe.
Falando em ousadia, muitos celebraram a defesa do papel da mulher na esfera pública — e não apenas na privada — feita pelo Papa em seu discurso às autoridades turcas. Ou, em outra nota, sua denúncia — aproveitando o aniversário de Niceia — do novo arianismo daqueles que consideram Cristo um líder carismático ou um super-homem, “uma distorção que, em última análise, leva à tristeza e à confusão”.
Ao final da viagem, jornalistas perguntaram sobre seu próximo destino: “Nada é certo”, respondeu ele, “mas poderia ser a África. Pessoalmente, gostaria de ir à Argélia para visitar os lugares associados à vida de Santo Agostinho e continuar aprofundando o diálogo entre cristãos e muçulmanos.”
©2025 Aceprensa. Publicado com permissão. Original em espanhol: León XIV en Turquía y Líbano: el primer viaje de un Papa todavía desconocido
Matéria: Gazeta do Povo





