Antissemitismo e a disputa pela direita americana

Eu não sei se o leitor tem acompanhado, mas a direita americana está em meio a um grande debate interno sobre os seus princípios e valores; talvez um dos maiores debates das últimas décadas. O debate tem várias nuances e conexões com outros temas – como pós-liberalismo e o papel do nacionalismo na direita atual –, e provavelmente precisarei escrever algumas colunas para tratar desse tema de maneira minimamente adequada.
Mas em linhas gerais, o debate em seu capítulo atual deu-se pelo seguinte: já há algum tempo o jornalista Tucker Carlson, conhecido conservador americano e ex-apresentador da Fox News, tem veiculado uma série de ideias repugnantes e dado voz a personagens com visões de mundo completamente vis.
Por exemplo, há cerca de um ano ele entrevistou Darryl Cooper, um suposto estudioso da história que afirma que Churchill foi o principal vilão da Segunda Guerra Mundial, e que Hitler não tinha intenção de matar judeus; que na verdade a Alemanha foi “despreparada” para a guerra, teve de colocar prisioneiros em campos de concentração, e eles “acabaram morrendo”. Ou seja: ele efetivamente nega qualquer intenção dos nazistas em assassinar judeus, como se o Holocausto tivesse sido um revés acidental, um inoportuno mal-entendido da história.
Mais recentemente, Tucker Carlson entrevistou Nick Fuentes, que se diz líder de um movimento chamado de “groypers” e que defende uma ideologia sem grandes coerências, mas que pode ser descrita como uma mistura de racismo, antissemitismo e misoginia, supostamente em defesa de uma visão racialmente “pura” dos Estados Unidos. Fuentes já havia dito que “toda mulher quer ser estuprada”, que “brancos têm razão para serem racistas”, que “Hitler era maneiro” (“cool” em inglês), que “os judeus são responsáveis por todas as guerras no mundo”, que há um elemento “oculto” (referindo-se aos judeus) dominando a política americana e que quando Fuentes e seu grupo alcançarem o poder, esse elemento terá de receber a pena de morte. Fuentes diz também que é fã de Stalin, o que ao menos é coerente com a sua bússola moral, nisso temos de concordar.
O que está em disputa são os princípios e valores da direita americana
O próprio Tucker Carlson tem favorecido ideias igualmente repulsivas, defendendo uma série de regimes autoritários pelo mundo (como o de Maduro), afirmando que o Hamas seria apenas uma “organização política” (em contraposição a ser um grupo terrorista) e que, mais que qualquer outro grupo, ele desgosta sobretudo dos cristãos sionistas, pois ao apoiarem Israel eles estariam cometendo heresia contra a fé cristã.
Muitos intelectuais da direita têm criticado esses personagens, e têm defendido que a direita se afaste deles. Charlie Kirk, aliás, um dos grandes líderes do movimento conservador e recentemente assassinado, era um grande crítico de Fuentes e de seu grupo.
Na semana passada, no entanto, Kevin Roberts, presidente da Fundação Heritage – um importante think tank do movimento conservador americano – publicou um vídeo em defesa de Tucker Carlson. No vídeo, ele afirma que a Heritage jamais faria qualquer tipo de “cancelamento” contra Carlson, e que haveria grupos submetidos “à agenda de outras pessoas” opondo-se à relação entre a Heritage e Tucker Carlson. Essa expressão “outras pessoas” é claramente uma referência a Israel e seus apoiadores, o que novamente é uma das temáticas mais antigas da história do antissemitismo: a ideia de que judeus controlam as nações, os governos, provocam a peste negra, fazem chover e, agora, querem romper a relação entre a Heritage e Tucker.
Kevin Roberts foi desonesto (ou bastante ignorante) ao enquadrar o debate como relacionado a liberdade de expressão ou “cancelamento”, quando o que está em disputa não tem nada a ver com isso. Criticar os antissemitas e afastar-se deles também é parte da liberdade de expressão e da liberdade de associação, ambas amparadas pela Primeira Emenda americana. O que está em disputa são os princípios e valores da direita americana.
Matéria: Gazeta do Povo





