Plataforma do Respeito, o “Grande Irmão” identitário do governo

Poucas medidas são tão eloquentes a respeito da intenção de controlar o discurso por parte das autoridades quanto a implantação de mecanismos de vigilância sobre o que é dito na internet. Em uma ironia tipicamente orwelliana, o Ministério dos Direitos Humanos anunciou, em meados de setembro, o lançamento de uma plataforma com o objetivo declarado de coibir um dos direitos humanos mais básicos, a liberdade de expressão. Em parceria com a ONG Aliança Nacional LGBTI+, o governo federal usará a inteligência artificial para rastrear publicações supostamente homofóbicas ou que constituam “discurso de ódio” – melhor dizendo, aquilo que as sensibilidades identitárias assim o considerarem.
A chamada “Plataforma do Respeito” custou R$ 300 mil, que vieram de uma emenda parlamentar – no caso, de autoria de Erika Hilton (Psol-SP). A ferramenta intitulada Aletheia (palavra grega para “verdade”, o que não deixa de ser outra ironia) irá “rastrear as origens da desinformação, denunciar seus impactos e viabilizar a responsabilização de autores e disseminadores”, como afirma o site oficial – por “responsabilização”, entenda-se denúncia à Justiça contra os autores das publicações. Jean Muksen, coordenador da plataforma, não esconde a intenção, nem o monitoramento. “Estamos monitorando basicamente todos os perfis de todos os parlamentares do Congresso e das assembleias legislativas dos estados atualmente. Além disso, influenciadores, blogs, sites de notícias – tem uma lista gigantesca”, afirmou, com a tranquilidade de quem julga não estar fazendo nada de grave.
Nem “desinformação” nem “discurso de ódio” são crimes devidamente tipificados na lei penal brasileira
Monitorar discursos na internet dessa forma, no entanto, é nada menos que totalitário. Não estamos falando de uma necessária vigilância contra o planejamento e o cometimento de crimes – uma das razões de existir de agências nacionais de inteligência, ou de departamentos específicos em polícias ou órgãos de investigação –, mas de controle amplo, geral e irrestrito do discurso público. E isso se estende inclusive à opinião, como Muksen também não esconde, ao dizer que em apenas nove dias a plataforma pegou 500 publicações com “potencial discurso de ódio”, e que ela é capaz de reconhecer “padrões de desinformação ou ódio” em discursos opinativos.
Nem “desinformação” nem “discurso de ódio” são crimes devidamente tipificados na lei penal brasileira, é preciso sempre recordar. Só isso já bastaria para que a “Plataforma do Respeito” já fosse considerada uma violação gravíssima da liberdade de expressão dos brasileiros. Mas os riscos para essa garantia constitucional são ainda maiores à luz da absurda decisão de 2019 em que o Supremo Tribunal Federal equiparou a homofobia ao racismo, em um julgamento cujas consequências em termos de repressão a manifestações legítimas dos brasileiros não demoraram para se fazer sentir.
Os responsáveis pela “Plataforma do Respeito” dizem que um advogado contratado pela Aliança Nacional LGBTI+ examinará cada publicação que cair no pente-fino da Aletheia antes de oferecer denúncia, como se isso fosse algum tipo de garantia de que não haveria abusos e que só publicações efetivamente criminosas – por exemplo, que incitem a violência contra a população LGBT – levem a algum tipo de responsabilização. Mas sabemos que a prática tem sido muito diferente. Ministros religiosos, como padres e pastores, têm sido denunciados simplesmente por repetir o que a doutrina de suas religiões afirma a respeito das relações homossexuais, e isso apesar de o discurso religioso ter sido o único explicitamente protegido no julgamento do MI 4733 e da ADO 26. Se é assim com um tipo de manifestação que os ministros concordaram em proteger, o que não acontecerá com os demais tipos de manifestação?
Desde o início daquele julgamento, havíamos alertado para a possibilidade de se criar um tabu inédito no Brasil: a criminalização da crítica a um comportamento específico, algo alheio a qualquer sociedade que se considere democrática. E não exageramos quando afirmamos que muitas outras opiniões legítimas – como argumentos de quaisquer natureza (religiosa, histórica, antropológica, biológica etc.) em defesa do casamento dito “tradicional” e contra a união homoafetiva, ou a crítica à ideologia de gênero – passarão a ser vigiadas e reprimidas, com chancela governamental. Em outras palavras, teremos o silenciamento puro e simples de uma corrente de pensamento lícita sobre um certo assunto, com a entronização e a imposição de uma determinada concepção moral como único discurso permitido.
A Plataforma do Respeito representa a adoção, de forma escancarada, do monitoramento de opiniões e da perseguição da dissidência como política pública
Como se não bastasse, o próprio poder público avisa que o objetivo de médio e longo prazo é ampliar a vigilância para outros temas. Symmy Larrat, ativista trans que representará o governo na supervisão do convênio da Plataforma do Respeito, afirmou que “esse é um formato que pode ser replicado para qualquer ‘ameaça’”. Como em nossa autocracia judiciária, qualquer crítica a instituições ou autoridades se transformou em “ataque à democracia”, certos questionamentos se tornaram “deslegitimação do processo eleitoral” e tanto o Executivo quanto o Judiciário já investem pesadamente em processos contra cidadãos comuns que se manifestam com um pouco mais de veemência na internet, não é nada difícil imaginar aonde tudo isso irá parar.
O “Grande Irmão” identitário implantado pelo governo não tem a capacidade de controlar as mentes dos cidadãos, mas nem será necessário: as pessoas podem continuar convencidas de suas opiniões, desde que resolvam mantê-las única e exclusivamente para si, autocensurando-se na internet para não acabarem flagradas pela inteligência artificial. Em um país que vive de violações cotidianas à liberdade de expressão, a Plataforma do Respeito consegue a proeza de se destacar por meio da adoção, de forma tão escancarada, do monitoramento de opiniões e da perseguição da dissidência como política pública.
Matéria: Gazeta do Povo





