Praia, bebida e maconha: drogas não são esporte

Eu e minha mulher temos um ritual de praia. Assim que chegamos na areia, brigamos. A razão é simples: gosto de ficar perto do mar, ela tem medo que a maré suba e molhe tudo. Isso acontece algumas vezes. Mas é um preço pequeno a pagar pelo som das ondas e a brisa. Ela acha o preço alto, e prefere ficar mais em cima, onde a areia é quente. Por isso brigamos.
No domingo não foi diferente. Chegamos na praia, brigamos, depois entramos em um acordo. Ficamos um pouco mais perto da água, porém próximos demais de um grupo. Esse é outro problema: não consigo deixar de ouvir as conversas ao redor. Elas atrapalham minha leitura.
O grupo, composto por umas cinco pessoas, falava alto. Eram quatro homens e uma senhora, todos de meia idade. A mulher tinha um timbre de voz que tornava impossível não ouvir o que ela dizia. “Não consigo mais desassociar praia de bebida e maconha”, escutei ela dizer. Segurei com força o livro que eu lia, Descobrindo Deus, de Rodney Stark, uma excelente história das religiões. Fiz força para não levantar o olhar.
Eles continuaram a conversa naquela direção: falaram sobre a maconha na rotina de cada um e sobre a importância de andar sempre municiado de um estoque de “baseados bem enroladinhos” – palavras de um deles. Um dos homens começou a contar sobre uma vez em que foi a um show de música com o pai. O pai, pelo que eu entendi, não aprovava drogas. O filho avisou: “Pai, nesse show o pessoal fuma muita maconha”. Aparentemente, o pai não levou o aviso a sério. Quando as luzes se apagaram para que o show começasse, uma quantidade grande de baseados foi acesa ao redor deles.
Toda vez que encontro pessoas de boa renda, que usufruíram dos benefícios do sistema do ensino, e que confessam, com ar blasé, o uso de drogas, também tenho vontade de perguntar: onde vocês compram a droga que usam?
Nesse ponto, meu incômodo venceu. Levantei e puxei a cadeira para longe, na direção do mar, com a intenção de terminar a leitura em paz. Fiquei sem saber o que aconteceu com o pai e o filho no show dos maconheiros. Da minha nova posição na areia eu pude observar melhor o grupo. Eram pessoas normais, com aparência de classe média alta. Reavaliei a idade da senhora: ela aparentava bem mais do que cinquenta anos.
Foi inevitável que eu lembrasse da declaração recente do atual governo federal do PT, que disse que os traficantes são, na verdade, vítimas dos usuários. Eu caracterizo essa declaração como sendo do governo – ela foi feita pelo chefe do Poder Executivo, em um discurso, em uma viagem oficial a outro país, e foi transmitida ao mundo pela mídia. Claro que, no dia seguinte, o governo se retratou, dizendo que a frase foi “mal colocada”. Essa é a definição de eufemismo.
Eu olhava aquele grupo na praia com vontade de caminhar até eles e perguntar: quantos traficantes vocês já vitimaram? Toda vez que encontro pessoas de boa renda, que usufruíram dos benefícios do sistema do ensino, e que confessam, com ar blasé, o uso de drogas, também tenho vontade de perguntar: onde vocês compram a droga que usam?
Não uso e nunca usei drogas, portanto não sei como os usuários se abastecem. Imagino que comprem de alguma pessoa próxima, alguém do mesmo meio social, que, por sua vez, compra de outro amigo, que compra de outra pessoa. Em algum momento essa transação é realizada com um traficante: um criminoso, pertencente a uma facção, envolvido na atividade criminosa mais violenta, violadora de direitos e opressora – o narcotráfico.
Essa semana o Rio sofreu mais um ataque: uma facção ordenou toques de recolher, bloqueou vias importantes e participou de uma batalha contra a polícia. Centenas de soldados do tráfico, armados de fuzis, enfrentaram policiais e assassinaram quatro deles. Mais de cem traficantes, em roupas de combate, foram mortos. Depois desses episódios o Rio sempre finge que volta ao normal e segue sua vida, até a próxima explosão. Mil e quinhentas favelas no estado são dominadas pelo tráfico. Há uma espada suspensa sobre a cidade.
Olho mais uma vez para o grupo e para a senhora que tem dificuldade de dissociar a praia da maconha. Ela continua discutindo em voz alta seu consumo de entorpecentes, como se falasse de um esporte ou de um passatempo. Sinto, ao mesmo tempo, pena e agonia. Depois chamo minha mulher, arrumamos as coisas e vamos embora.
Matéria: Gazeta do Povo




