Sei que muitos de vocês têm dificuldade em ver no ex-presidente Jair Bolsonaro um ser humano. Um marido, ex-marido, pai, avô e tiozão do churrasco. E tudo bem. Tenho a mesma dificuldade porque tendemos a desumanizar as figuras públicas. Elas se tornam coisas e são reduzidas a nomes que representam certas ideias. É assim com Bolsonaro. Mas também é com o Lula. Com o Maduro, com o Trump. E até com personalidades das quais nada sabemos, só ouvimos falar. Tipo um… Jay-Z.
Mas hoje vou te pedir para fazer um esforcinho. Vou te pedir para, de algum modo, deixar esse nojo de lado. A admiração, se porventura houver, também. Deixe de lado o que quer que você sinta pelo mito e tente ver não o ex-presidente, líder da direita, capitão, etc.; tente enxergar o Jair que se esconde por trás do Bolsonaro. Será que você consegue? Conseguimos?
O Jair está mal
É difícil mesmo e eu precisei de alguns minutos. Mas finalmente vi o homem no vídeo divulgado por Carlos Bolsonaro, em que Jair aparece dormindo, absolutamente vulnerável, o abdômen inchado, num sono ritmado por fortes soluços. Nem sei como ele consegue dormir nessas condições. Mas isso não vem ao caso. O que importa é que o Jair está mal. Está debilitado. Pelo vídeo, tenho a impressão de que ele é um senhor de 70 anos já naquela fase em que a gente começa a pensar no testamento.
Esse é o lado humano e dá dó. Muito dó. Em qualquer um que tenha um coração, dá dó. Ainda mais levando em conta que o doente em questão está confinado a uma cela, distante dos filhos e da mulher, tendo apenas um tablet por companheiro. Um dó que só aumenta quando você pensa que o Jair foi um homem com tanto poder e apoio, e que agora vive assim, da piedade de seus impiedosos algozes. Se o Jair merece ou não esse fim deprimente, vai da opinião de cada um. Eu acho que não, que ninguém merece. Nem o Lula. Mas quem sou eu/ e quem é você/ nessa história não sei dizer.
“O STF quer matar Jair Bolsonaro”
Mas eu não estaria aqui escrevendo sobre o Jair se ele não fosse também Bolsonaro. E, por isso, o vídeo tem que ser visto pelo que ele é: uma peça de propaganda em benefício não do homem, e sim do ex-presidente. Do mito. O vídeo tem um propósito político que vai além de denunciar a situação do Jair. A gente sabe. O vídeo quer expor a injustiça e a crueldade do regime PT-STF – e, nesse caso, eu diria que mais STF do que PT. Em outras palavras, o vídeo pretende reforçar a tese de que “o STF quer matar Jair Bolsonaro” – como, aliás, o próprio Carlos usou as redes para dizer.
Politicamente, porém, o vídeo é uma contradição perigosa para o bolsonarismo. Porque mostra que o mesmo Bolsonaro forte e lúcido, o líder da direita que toma decisões importantíssimas de dentro da prisão, como a indicação do filho, Flávio Bolsonaro, à Presidência, e o sujeito que tem que estar livre e desimpedido para ser candidato em 2026, é esse Bolsonaro aí, que precisa de cuidados médicos 24 horas por dia e que, “se broncoaspirar por causa do refluxo constante, vai morrer”.
Biiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
Não entendo a estratégia. Nem se existe estratégia ou se é apenas desespero filial (que merece nosso respeito). Afinal, na remotíssima hipótese de Bolsonaro ser candidato à Presidência em 2026, é óbvio que essa fragilidade física, emocional e mental será explorada pela esquerda. Nesse caso, não é difícil imaginar as especulações. Especulações justas, aliás. Bolsonaro tem condições de exercer um segundo mandato? Pelo vídeo, não. Bolsonaro tem condições de liderar um grupo político vencedor em 2026? Novamente, não. Pelo vídeo, não.
O que mais uma vez reforça a minha tese de que, apesar dos discursos inflamados e das declarações em contrário, o papel de “oposição ao Sistema” é confortável para a direita. Sobretudo a direita bolsonarista (tem outra?). Eles elegem uns deputados aqui, uns senadores ali. Posam de revolucionários conservadores. E tá tudo certo. Não fosse isso, estariam preocupados com a imagem frágil do ex-presidente. Afinal, em quem você acha que o povo tende a votar: naquele que aparece fazendo musculação e dizendo que vai viver até os 120 anos (deusolivre!) ou em quem foi indicado por alguém que parece que pode morrer a qualquer biiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii…? (Parêntesis meramente decorativo. É que odeio terminar textos com ponto de interrogação. Frescura minha).
Matéria: Gazeta do Povo
