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Mykola Kuleba resgata crianças ucranianas que a Rússia roubou

Nos anos 1990, o então empresário Mykola Kuleba visitou uma instituição para crianças com deficiência que o marcou profundamente. Chocado com as condições precárias em que elas viviam, ele decidiu dedicar sua vida a salvá-las. Foi o início de uma transição que o levou à uma missão ainda mais complexa: resgatar crianças ucranianas sequestradas pela Rússia.

A Rússia leva as crianças para acampamentos de verão, orfanatos, colégios militares e para a adoção forçada em famílias. A proposta do governo de Vladimir Putin é torná-los russos e empregá-los nas Forças Armadas. O processo foi chamado de “russificação” por um relatório da Universidade de Yale (EUA) que analisou a situação. 

O estudo identificou pelo menos 210 instalações espalhadas pela Rússia e territórios ucranianos ocupados, utilizadas para abrigar e doutrinar esses menores.  

“A Rússia tem uma política sistemática de apagar as identidades das crianças ucranianas – mudando seus nomes, alterando datas de nascimento e forçando a cidadania russa sobre elas. Essas ações são impulsionadas por uma estratégia destinada à aniquilação da identidade ucraniana e à destruição da Ucrânia como nação”, diz Kuleba, fundador da Save Ukraine, a principal ONG ucraniana a realizar esses resgates.

Reconhecido pelo Prêmio Magnitsky

Seu trabalho é reconhecido mundialmente. Em 2023 ganhou o Prêmio Magnitsky em 2023 na categoria “ativista de diretos humanos de destaque”. Ironicamente, o nome da premiação é uma homenagem a um advogado que é russo, o Sergei Magnitsky.  

O advogado denunciou um grande esquema de corrupção estatal e acabou preso, torturado e morto na prisão em 2009. Seu nome, então, deu origem ao prêmio, que reconhece quem trabalha a favor da humanidade, e à Lei Magnitsky (aquela aplicada ao ministro do STF Alexandre de Moraes), que impõe sanções a quem viola os direitos humanos ou corrupção sistêmica.

Os resgates realizados pela Save Ukraine são operações complexas, e exigem não só um planejamento detalhado, mas um longo trabalho de reintegração dessas crianças às suas famílias e à sociedade. 

Kuleba acredita que a comunidade internacional, incluindo o Brasil é crucial para reverter o destino das crianças ucranianas: “Não desviem o olhar. As vozes das mil crianças que resgatamos contam uma história que o mundo não pode ignorar”, diz Kuleba. 

Em passagem pelo Brasil, Kuleba que também é pastor, compartilhou o que está por dentro da rede que resgata menores ucranianos militarizados pela Rússia, com exclusividade para a Gazeta do Povo: 

Gazeta do Povo: Qual episódio pessoal o levou a se dedicar à proteção das crianças ucranianas? 

Mykola Kuleba: Na visita que fiz a uma instituição na década de 1990, vi crianças confinadas a camas, muitas delas amarradas para evitar movimentos. O silêncio era ensurdecedor – essas crianças tinham aprendido que chorar não trazia conforto, então elas simplesmente pararam.

Um menino em particular mudou tudo para mim na instituição que visitei em Kiev. Ele tinha cerca de sete anos, estava gravemente desnutrido, com olhos que pareciam olhar através de mim, em vez de para mim. Quando me aproximei dele, ele estremeceu – um reflexo nascido da expectativa de dor, e não de gentileza, dos adultos. Um funcionário mencionou que ele havia sido abandonado ainda bebê por causa de sua deficiência e nunca havia saído da instituição. Nunca sentiu o sol em seu rosto fora daquelas paredes. Naquela noite, eu não consegui dormir.  

Depois disso, comecei a visitar instituições, levando suprimentos e passando tempo com as crianças. Logo estava defendendo melhores condições e, em seguida, alternativas às instituições por completo. Cada passo me levou a uma compreensão mais profunda do sistema falho e das reformas necessárias. 

Existem relatos de que milhares de crianças ucranianas foram levadas à força para a Rússia ou regiões ocupadas. É verdade? 

Sim. Resgatamos crianças de várias instalações russas, como academias militares, instituições e até famílias de acolhimento russas. Essas crianças experimentaram abusos físicos, psicológicos e, às vezes, sexuais graves.  

Muitas testemunharam seus parentes serem mortos ou torturados diante de seus olhos. Um menino que retornou pulava instintivamente debaixo de uma mesa sempre que ouvia um som alto – um lembrete dos bombardeios que ele havia sobrevivido.  

O trauma se manifesta de inúmeras maneiras. Crianças que resgatamos de campos militares contaram que receberam semanas de treinamento militar, incluindo a confecção de armadilhas com granadas, aprendendo a minar e desminar, e a explodir tanques. 

Por que isso acontece? 

A Rússia tem uma política sistemática de apagar as identidades das crianças ucranianas – mudando seus nomes, alterando datas de nascimento e forçando a cidadania russa sobre elas. Essas ações são impulsionadas por uma estratégia destinada à aniquilação da identidade ucraniana e à destruição da Ucrânia como nação.  

A Rússia está motivada a reter essas crianças porque cada criança resgatada é uma testemunha de um crime de guerra e poderia testemunhar em um tribunal. Essas ações constituem claros crimes de guerra e tornam o retorno dessas crianças por canais oficiais quase impossível.  

A adoção forçada de crianças ucranianas é considerada uma forma de tráfico de seres humanos. Relatórios mostram que crianças ucranianas roubadas de territórios ocupados são listadas online em catálogos, descritas como produtos e filtradas por características físicas ou traços de obediência, o que são “manifestas demonstrações de tráfico infantil”. 

Como é o processo para trazê-las de volta em segurança? 

Cada resgate é único e requer um planejamento cuidadoso para garantir a segurança de todos. Desenvolvemos o que chamamos de “ferrovia subterrânea” – um sistema único para resgatar essas crianças que opera com a máxima confidencialidade. Cada retorno é essencialmente uma operação especial com múltiplas fases e riscos significativos. 

 O processo começa com nossa equipe de investigadores, que monitora constantemente várias fontes, incluindo listas online de crianças sequestradas. Assim que identificamos e localizamos uma criança, nossos mediadores estabelecem comunicação.  

Esta etapa é crucial – devemos explicar cuidadosamente a verdade sobre a guerra e seus parentes, pois muitas crianças foram submetidas a intensa propaganda. 

Qual tipo propaganda? 

As crianças são informadas de que a Ucrânia não existe, coagidas a odiar sua pátria e punidas se resistirem. Isso inclui serem forçadas a frequentar escolas russas, falar apenas russo e glorificar a Rússia e Putin. Crianças são recrutadas para movimentos militar-patrióticos e academias militares, e forçadas a serem crianças-soldado. 

Quantas crianças a Save Ukraine já resgatou das mãos dos russos? 

Até hoje, a Save Ukraine recuperou com sucesso 981 crianças da Rússia e de territórios ocupados. Isso faz parte do esforço nacional mais amplo da Ucrânia, que conseguiu recuperar mais de 1.500 crianças no total.  

No entanto, esses números representam apenas uma fração dos milhares que permanecem em mãos russas. Mas quero enfatizar que nosso trabalho se estende além desses resgates de alto perfil da Rússia.  

A Save Ukraine é também a maior organização a resgatar crianças vulneráveis de zonas de combate ativas dentro da Ucrânia. Evacuamos mais de 100.000 crianças, mulheres e suas famílias dessas áreas perigosas. 

Qual é a estimativa de crianças capturadas pela Rússia? 

Estima-se que mais de 1,5 milhão de crianças estejam presas sob ocupação russa desde o início da guerra russo-ucraniana. Esse número se refere a crianças e famílias que não podem deixar os territórios ocupados. Autoridades ucranianas afirmam que cerca de 19.500 continuam desaparecidas, mas o número real pode ser muito maior porque estas são só as que existem relatórios confirmados.  

O próprio governo russo citou ter transferido mais de 700 mil crianças ucranianas para a Rússia. Em 2023, Maria Lvova-Belova (comissária presidencial para os direitos da criança da Rússia) afirmou que seu país já registrou 744 mil crianças ucranianas. 

A famílias são envolvidas no resgate? 

Um elemento crítico é encontrar parentes que possam viajar fisicamente para áreas controladas pela Rússia. Esses membros da família devem estar preparados com os documentos necessários e a determinação de lutar localmente pela libertação da criança. Fornecemos suporte financeiro abrangente ao longo desta perigosa jornada, pois essas operações são extremamente caras. 

O que acontece com elas depois do resgate? 

O resgate é apenas o começo do nosso trabalho. Quando as crianças retornam dos territórios controlados pela Rússia, elas trazem consigo um trauma inimaginável que requer cuidados especializados e de longo prazo. O que encontramos é verdadeiramente desolador.  

Após o retorno, essas crianças recebem suporte abrangente através dos nossos dois Centros de Esperança e Cura. Oferecemos até mil leitos em nossos programas de reabilitação, fornecendo cuidados psicológicos, suporte legal e assistência médica.  

Também estabelecemos 130 casas modulares para as famílias se restabelecerem e. serviços de reabilitação contínuos. Para crianças sem laços familiares, fornecemos serviços especiais, incluindo apoio à vida independente ou assistência para encontrar novas famílias.

“Devolva nossos filhos, devolva nossas vidas” diz o cartaz de um protesto de 2022 (Foto: EFE/EPA/MYKOLA TYS)

E elas conseguem superar o trauma rapidamente? 

Leva tempo e experiência para ajudar essas crianças a se reconectarem com a realidade. Algumas crianças requerem dois a três anos de reabilitação intensiva, especialmente aquelas que foram doutrinadas. Temos uma equipe de psicólogos e terapeutas que desenvolveram protocolos para “desprogramar” a doutrina pela propaganda russa nas crianças. 

Lembro-me de um menino que permaneceu convencido por seis meses após seu retorno de que havia sido resgatado dos “nazistas” pela Rússia. Muitas crianças têm lacunas educacionais significativas. Algumas de 11 ou 12 anos não conseguem ler ou escrever. 

Que tipo de apoio o senhor tem recebido nessas missões de resgate? 

A comunidade internacional é instada a investigar e processar crimes de guerra relacionados à deportação e adoção forçada. Nossas operações de resgate dependem muito do apoio do mundo civilizado, tanto político quanto financeiro. Embora não possamos revelar detalhes confidenciais de todas as transações financeiras para operações especiais, posso compartilhar algumas.  

Dos Estados Unidos, recebemos principalmente pressão política e conscientização. Da União Europeia, Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, enfatizou publicamente que “toda criança ucraniana sequestrada pela Rússia deve ser devolvida à sua família”. Recebemos ainda apoio financeiro e moral de parceiros europeus, o que foi crucial.  

Somos particularmente gratos ao Brasil por sua resposta humanitária em acolher refugiados ucranianos. O povo e o governo brasileiro demonstraram uma solidariedade notável ao oferecer não apenas abrigo, mas também suporte de integração para famílias que perderam tudo. 

O que o Tribunal Penal Internacional ou das agências da ONU têm feito sobre isso? 

O Tribunal Penal Internacional (TPI) já tomou medidas significativas ao emitir mandados de prisão para Putin e Lvova-Belova especificamente pela deportação forçada de crianças ucranianas. Este é um acontecimento histórico e envia uma mensagem poderosa de que essas ações são reconhecidas como crimes de guerra no mais alto nível internacional.  

O que é importante entender é que isso não é meramente sobre crença ou esperança – é uma questão de justiça. Se falharmos em responsabilizar os perpetradores por esses sequestros sistemáticos, isso enviará um sinal perigoso a todos os regimes totalitários de que eles podem agir com impunidade.  

Como diz o ditado, “a ausência de justiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todos os lugares”. No entanto, ainda enfrentamos desafios significativos. Precisamos que a comunidade internacional, incluindo as agências da ONU, aumente a pressão sobre a Rússia. 

O senhor testemunhou pessoalmente alguma operação de resgate que o marcou? 

Nunca esquecerei o caso de Sophia, uma menina de 15 anos da região de Kherson. Por meses, eles a forçaram a correr com metralhadoras e pás. Esta é uma criança que deveria estar na escola, não manuseando explosivos. Quando finalmente resgatamos Sophia, ela estava retraída, desconfiada e profundamente traumatizada.  

Mas o que mais me comove é a sua resiliência. Hoje, ela vive com seus irmãos na Ucrânia livre e está estudando para se tornar cabeleireira – perseguindo o sonho que tinha antes de a guerra interromper sua vida. Lembro-me do dia em que ela concluiu seu programa de reabilitação, me disse: “Eles tentaram me transformar em um soldado para a guerra deles, mas em vez disso eu vou criar beleza”. Sua transformação me lembra por que nosso trabalho é importante.

Marina Kondratieva e sua filha Yevgenyia, durante entrevista à EFE, em 2023, dias depois de a mãe ter conseguido o retorno da menina à Ucrânia com a ajuda da ONG Save Ukraine. Yevgenyia passou quase seis meses separada dos pais pelas autoridades russas, que a convidaram para um acampamento de verão que deveria durar duas semanas (Foto: EFE/Marcel Gascón)

Como o senhor e sua família lidam com tudo isso? 

Este trabalho cobra um preço pessoal. Há noites em que não consigo dormir depois de ouvir depoimentos de crianças sobre abusos em campos russos. Mas então me lembro daquele menino de anos atrás, e sei que testemunhar o sofrimento cria uma obrigação de agir.  

Toda criança que trazemos para casa, toda família que reunimos – elas não são apenas estatísticas para mim. Cada uma representa uma vida que, de outra forma, poderia ser perdida para o trauma e o isolamento. Esta não é apenas a minha profissão; é o meu propósito. 

Qual é a principal mensagem que o senhor gostaria de enviar à comunidade internacional, como o Brasil? 

Não desviem o olhar. As vozes das mil crianças que resgatamos contam uma história que o mundo não pode ignorar. Seus depoimentos – às vezes vacilantes, às vezes tremendo de medo, mas sempre inconfundíveis – falam não apenas do que suportaram, mas pintam um quadro da Rússia nos territórios ocupados.  

Minha mensagem para o Brasil e para a comunidade internacional é simples: a distância do conflito não diminui sua responsabilidade de agir. O Brasil, com sua rica tradição de diplomacia humanitária e seu compromisso com os direitos da criança, tem uma oportunidade única de ser uma voz poderosa para essas crianças.  

A tragédia que se desenrola na Ucrânia pode parecer distante, mas se o mundo permitir que crianças sejam usadas como instrumentos de guerra em um conflito, isso estabelece um precedente perigoso para todos os conflitos. O destino delas revelará muito sobre quem somos como comunidade global e quais valores realmente defendemos. 

Matéria: Gazeta do Povo

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Gabriel de Melo

Criador, fundador e locutor da Rádio Esperança e também do Blog Palavra de Esperança, tem como objetivo divulgar o evangelho de Cristo par outras pessoas através da Internet por meio dos louvores e da palavra de Deus nas mídias sociais.

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