Patriotismo, uma virtude esquecida

Alguns eventos recentes da passada semana comoveram e impressionaram boa parte da população brasileira — sim, ainda se impressionam os que resguardam na alma um senso de justiça e equanimidade. Não costumo me manifestar politicamente, e não vou, neste artigo, contrariar o costume. Trago apenas à reflexão um tema que, na verdade, nos deveria ser caro em qualquer tempo, não só nos de crise. Nesta coluna, e no demais do meu trabalho, chamo sempre a atenção para o conceito e para a realidade das virtudes: o que são, qual sua dinâmica própria, qual sua dinâmica no contexto da formação de um caráter, de uma personalidade madura e coesa, e sobretudo qual o melhor modo de educá-la, pois cabe aos pais orientar os filhos no caminho da virtude. Meu assunto hoje é uma virtude, uma virtude lamentavelmente esquecida: o patriotismo.
Nosso tempo desenvolveu um verdadeiro horror da própria palavra, e de qualquer coisa que se relacione com o tema. A virtude que outrora inspirou poesia e sacrifícios de coragem é hoje reduzida a uma caricatura, confundida com nacionalismos fanáticos etc. Portanto é preciso distinguir as coisas, o que fez muito bem o nosso Gustavo Corção, ao dizer:
“O patriotismo é uma forma de reverência que tem apoio na tradição. É um sentimento, raro hoje, de respeito pelos antepassados. É um modo peculiar, racional e afetivo, de ver no chão de uma terra o sinal de pés antigos. É um modo especial de adivinhar numa paisagem os sinais, os comoventes sinais de antigas mãos. É um modo sem igual de simpatizar com dores passadas e de se alegrar com passadas alegrias. É ter uma história comum, que vem de longe, cantada na mesma língua e vivida no mesmo grande e permanente cenário.”
“Patriotismo é, pois, a virtude da longa continuação e da grande fidelidade. Fundamenta-se no passado, como raiz, e valendo-se do que houver de genuíno nesta tradição projeta-se para o futuro. O patriota deseja um Brasil melhor, deseja com todas as forças da virtude bem equilibrada a perfeição do seu povo, de sua cultura, de suas instituições.”
Uma pátria possui, antes de mais nada, uma sustentação história, cultural e também espiritual. As nações têm uma espécie de vocação
Já o nacionalista “também deseja um Brasil melhor, mas num outro sentido. Na verdade o que ele deseja é um outro Brasil. Seu critério está mais numa invenção do que numa continuação, é mais ideia do que realidade. Existe, pois, sob este ponto de vista, uma diferença radical entre os dois espíritos. O patriotismo é uma reverência diante de uma realidade que continua. O nacionalismo é uma exultação diante de uma idéia a ser realizada, de uma coisa que não existe, sonho de uns poucos, pesadelo de muitos.”
A etimologia, como sempre, lança luz sobre o que está em jogo. Pátria deriva de patres, os pais. Remete à terra recebida, ao que nos antecede, ao passado que nos formou antes que tivéssemos consciência. É herança. Mas a pátria não é uma obra acabada; é, sim, uma construção contínua. Uma nação é muito mais que uma geografia ou uma etnia. Aliás, no caso da nossa pátria brasileira, sabemos bem que mais de uma etnia se juntou para a formação miscigenada de nossa identidade. Isso só ajuda a esclarecer mais ainda que uma pátria possui, antes de mais nada, uma sustentação histórica, cultural e também espiritual. As nações têm uma espécie de vocação. Isso não é ufanismo, nem algo parecido com milenarismos ou messianismos: é o reconhecimento de que tudo o que faz parte da vida humana, incluso a política e a pátria, rebate em todas as dimensões do ser humano e do mundo. Em outras palavras, Deus e o espírito imortal não deixam simplesmente de existir quando o assunto é o país.
Tradicionalmente, diz-se que um anjo vela pelo destino de cada nação. Essa concepção está presente na obra de mais de um dos Padres da Igreja, escritores cristãos dos primeiros séculos (como na de Clemente de Alexandria e o Pseudo-Dionísio Areopagita, por exemplo). A tradição patrística recorda que, ao confiar as diversas nações aos anjos, Deus reservou para Si o cuidado direto de Israel. Isso queria significar que, embora múltiplas em povoamentos e línguas, há na realidade última apenas uma única Providência governando o universo – infinitamente acima de todas as potências, visíveis e invisíveis. E o anjo designado a um povo conduz à divindade aqueles que o seguem com retidão de vontade. Essa antiga visão atravessou os séculos e reaparece, por exemplo, nos escritos do cardeal São John Henry Newman. Para ele, Estados e governos não se explicam apenas pela política: possuem vida derivada de “poderes invisíveis”. A menção ao “príncipe da Pérsia” no livro de Daniel (Dn 10,13) e aos “anjos das sete igrejas” no Apocalipse confirmaria essa percepção. E não nos lembramos de que, em Fátima, o anjo se apresentou aos pastorzinhos, Lúcia, Francisco e Jacinta, como “o anjo de Portugal”?
Mas, ao lado dessa tradição luminosa, existe outra, igualmente antiga, que vincula alguns encaminhamentos políticos, desenvolvimentos técnicos e desvios civilizatórios a influências demoníacas. Também aqui não se trata de teorias conspiratórias, ou uma visão aterrorizada, impressionista ou distorcida, que visse monstros por toda parte, isentando o ser humano de suas responsabilidades. Ao contrário: é uma visão realista, que não se esquece de que, quando vai fazer política, o homem continua sendo um ser espiritual e imortal, e recebendo influências espirituais. Nos textos dos Padres, vemos Orígenes, de modo explícito, sustentar que há anjos bons e maus não apenas para os indivíduos, mas também para nações inteiras. E o Pseudo-Dionísio afirma que a idolatria e a queda moral dos povos não devem ser atribuídas aos bons anjos, mas ao orgulho que os espíritos decaídos instigam nos homens. O cardeal Newman ecoa essa possibilidade quando sugere que instituições podem ser animadas por seres com muito de bem, mas também com grandes deformidades.
E, ainda segundo os Santos Padres, com a Encarnação de Jesus a história mudou de eixo. Os anjos fiéis puseram-se a serviço do Cristo. Para alguns desses autores, a alegria dos pastores no Natal é símbolo disso: a chegada do Salvador era ajuda e redenção para os guardiões espirituais dos homens e das nações. Os anjos malignos, porém, reagiram com furor ao perder o domínio sobre os povos. E é aqui que se insere o conceito de “Cristandade”, que por cerca de mil anos vigorou: um regime histórico no qual povos diversos, cada qual com seu anjo guardião, reconhecem a soberania de Cristo. Os maus espíritos não perderam toda a capacidade de influência, mas sua força tornou-se limitada. Com o esgarçamento da Cristandade e o advento dos tempos modernos, a luta espiritual recrudesceu. Mas para nosso tema interessa sobretudo isto: assim como cada homem recebe um anjo da guarda, cada pátria, também, possui o seu.
Resta notar, então, que uma pátria, uma nação não se reduz ao que é material, ao que está sujeito ao tempo, mas que a “cidade dos homens” faz parte de um projeto que aponta para a “cidade de Deus”. Há quem pense que a pátria se esgote no solo que se pisa, mas isso é apenas o primeiro alicerce. A terra é memória viva, é herança recebida dos antepassados, e se sustenta no respeito ao seu legado. Um território pode ser fértil, vasto, belo, como apregoa o nosso hino nacional, mas ainda assim não gerar uma verdadeira pátria – se não houver homens que o habitem com identidade comum, se não houver laço humano que transforme o chão em destino, a paisagem em lar, o sangue em história. A pátria não nasce apenas do chão: nasce da fidelidade dos homens que o habitaram, da permanência do coração que se reconhece ligado a quem veio antes e a quem virá depois. Somos uma continuidade, nunca um começo absoluto.
A pátria exige três raízes inseparáveis: terra, povo, patrimônio. A primeira – o território – é realidade concreta e visível; a segunda – a comunidade de pessoas – dá carne ao pertencimento; a terceira – a tradição cultural – assegura permanência ao longo das gerações. Um povo não é uma massa, não é agregado mecânico de indivíduos: é comunhão de destinos, concordância de amores, fraternidade de história. Como definiu Santo Agostinho, “povo” é a reunião de homens racionais “unidos pela comunhão das coisas que amam”. É o amor comum o que distingue uma pátria. A pátria, assim compreendida, é totalidade: terra marcada por sepulturas; povo que a habita em gerações contínuas; cultura que modela o espírito e dá forma à vida. É a herança completa do homem – território, memória, obras, costumes, valores cristalizados no tempo. E aqui está o ponto a que pretendia me dirigir desde o início: recebê-la não é apenas um direito, é também um dever e uma responsabilidade. O que nos chega como dom torna-se encargo, o que herdamos como graça torna-se tarefa – tarefa diante de Deus, diante dos antepassados, e diante dos descendentes que ainda nem nasceram. Por isso, a pátria não se escolhe como clube ou partido, não se adota como contrato revogável.
Parece ser urgente educar os jovens, não apenas para o êxito privado, mas para a responsabilidade pública
Eis o ponto decisivo: o patriotismo é uma virtude, e não um instinto. São Tomás de Aquino inclui essa virtude dentro do âmbito da pietas, a virtude da “piedade”, que é subordinada à da justiça. Justiça é dar a cada um o que lhe é devido. Mas há dívidas impossíveis de retribuir plenamente: a que devemos a Deus, a que devemos aos pais, a que devemos à pátria. Porque deles recebemos princípio de vida e formação, origem e destino. Somos, portanto, eternos devedores. Ora, essa é a nobreza da piedade: reconhecer que jamais quitaremos a dívida do ser. A pátria nos deu língua, chão, memória, festa, luto, oração. Deu-nos autores, santos, tradições, batalhas, campos arados pelos mortos. Tudo isso nos foi entregue antes do nosso primeiro grito. Quando um povo perde o sentido dessa dívida, começa também a perder sua própria alma. E é precisamente para evitar esse esquecimento que se escreve, que se ensina, que se ama. Porque a pátria não é apenas onde nascemos, é o que somos. E ninguém pode renegar a si mesmo sem primeiro mutilar o coração.
Quando São João Paulo II visitou a Argentina, em 1987, recordou essa verdade. Falou ali do laço íntimo que existe entre piedade e liberdade. Os filhos – disse então o papa polonês – não são escravos, mas herdeiros; reconhecem nos pais não apenas a origem da existência, mas da dignidade e da liberdade que lhes foi ofertada. Honrar os pais é também conservar o patrimônio recebido – e essa honra é a própria pietas, na qual o quarto mandamento figura como ponte entre gratidão e responsabilidade. A pátria está compreendida ali: “Honra teu pai e tua mãe… para que vivas longos dias na terra que o Senhor teu Deus te dá”. Será essa fidelidade, concluía ele, essa piedade, que consolidará a identidade do povo e o capacitará a custodiar sua liberdade e sua herança cultural.
Ademais, se o patriotismo nasce da pietas, como já dissemos, pertence também à justiça. Tomás de Aquino lembra que há três formas de justiça: a comutativa, que regula trocas e contratos; a distributiva, pela qual a autoridade dá a cada qual o que lhe cabe; e a legal, que regula o que o cidadão deve ao bem comum. O patriotismo habita esta última. A piedade olha com respeito para o passado, herança recebida; a justiça legal olha para o futuro, para o bem comum a construir. E à objeção de que quem busca o bem comum perde o seu próprio, Tomás responde com dois argumentos: primeiro, que ninguém prospera num país arruinado; segundo, porque o homem é parte de uma totalidade e o cuidado do todo assegura o bem das partes. Os antigos romanos diziam preferir “ser pobres num império rico, a serem ricos num império pobre”, amparados no princípio, cultivado por todos, de sacrificar-se pelo bem comum. Não é exatamente o retrato das nossas elites, não é mesmo?
Por tudo isso, parece ser urgente educar os jovens, não apenas para o êxito privado, mas para a responsabilidade pública. O bem individual deve transbordar para o próximo que está ao redor, deve cumular o bem comum. O sucesso pessoal não é uma conquista mesquinha e egoísta, não pode ser. O bem é, por natureza, difusivo de si mesmo, de vez que um bem egoísta deixa, desde logo, de ser um bem. Sem essa formação, não haverá cidadãos, apenas “habitantes”.
Quando uma sociedade já não consegue pôr o bem comum acima dos interesses de classe, de partido, de mercado, ou mesmo acima do conforto individual, ela adoece
Sem justiça e piedade, não haverá pátria, apenas território – e território dominado, ou devastado. A educação cívica, recorda de novo São Tomás, só cumpre seu fim quando forma cidadãos ordenados ao todo maior. A parte deve ajustar-se ao corpo, assim como o indivíduo deve integrar-se à cidade; e isso se aprende, antes de tudo, pela educação. Uma educação que não forme para a entrega, para o vínculo comunitário, para o amor concreto ao povo e à terra, condena-se à esterilidade.
Quando uma sociedade já não consegue pôr o bem comum acima dos interesses de classe, de partido, de mercado, ou mesmo acima do conforto individual, ela adoece. E o sintoma mais claro dessa febre moral é a incapacidade de sacrifício. Se o braço se recusasse a defender a cabeça, o corpo inteiro pereceria, não seria mais um todo e uma só saúde. Assim também ocorre com a pátria quando cada setor busca apenas sua vantagem – o país racha, o vínculo se dissolve, o patriotismo desmaia. Educar o jovem para preferir a honra ao lucro, a verdade à conveniência, a pátria ao próprio interesse – eis o remédio que poderia curar o corpo nacional.
É que o patriotismo, embora enraizado na piedade e ordenado pela justiça, não se encerra nelas. Ele se eleva, transfigura-se, quando tocado pela caridade, que é vínculo com Deus e com o próximo. A caridade faz do amor natural à pátria um amor transfigurado. E se o amor ao próximo deve começar pelos que nos estão mais próximos, também o amor à pátria entra nessa hierarquia: primeiro os que partilham conosco o sangue, a língua, a história, a casa comum da nossa nação.
Uma pátria sem Deus pode tornar-se ídolo, é verdade, e daí nascem o nacionalismo cego, orgulhoso, desproporcionado. Também um coração que busca a Deus ignorando a pátria torna-se etéreo, e daí nasce um espiritualismo desencarnado, abstrato, que quer amar o Céu sem notar que tem os pés sobre um chão. A ordenação das virtudes – piedade, justiça, caridade – e a ligação, por assim dizer, entre o Céu e a Terra que se dá no ser humano, é o que impede o erro e nos abre um caminho. Não se defende a pátria sem Deus, que a ela deu um anjo; nem se ama Deus renegando a pátria, que é o chão e a história onde nos fez nascer. Onde um desses amores adoece, o outro também enfraquece. Afinal, a nossa pátria terra nada mais é do que a figura da sempiterna pátria celestial.
Matéria: Gazeta do Povo





