quando as lembranças ganham voz

“Há na vida momentos privilegiados em que parece que o Universo se ilumina, que a nossa vida nos revela sua significação, que queremos o destino mesmo que nos coube como se nós mesmos o tivéssemos escolhido.”
(Louis Lavelle)
Seu João, o porteiro, avisa pelo interfone que há uma encomenda para mim. O pacote tem o tamanho de uma caixa de sapatos e talvez seja mesmo uma caixa de sapatos, presente da minha tia Lia. Mas imediatamente me dou conta de que não pode ser isso, pelo simples fato de que o presente de minha tia chegou uma semana atrás e é uma camisa.
Trata-se de uma caixa simples, embalada com papel kraft e fita adesiva transparente. Sei que sou o destinatário da encomenda porque, sobre o papel, está escrito com caneta piloto, em letras maiúsculas, o nome pelo qual todos me chamavam na infância: PAULO ANTÔNIO.
Com a ajuda de uma tesoura, consigo abrir a primeira camada do pacote e descubro que, no interior da caixa, há algo hermeticamente envolvido por um papel-bolha, cuja dupla função é amortecer eventuais impactos no transporte e servir como alívio de estresse para pessoas nervosas, entre as quais eu não me incluo.
Desfaço o embrulho e percebo que o objeto em questão é um gravador e toca-fitas CCE modelo CT-1029. Não preciso olhar duas vezes para constatar que o gravador é exatamente igual ao que eu ganhei de presente dos meus pais no Natal de 1978.
Aliás, não é um gravador exatamente igual ao que ganhei em 1978: é o mesmo gravador. Sei disso não apenas porque ele está bastante velho, mas porque dentro dele há uma fita cassete Scotch em cuja etiqueta está escrito “Lembranças familiares”, com a inconfundível letra do meu pai.
Essa é a fita da minha vida. Agora vou apertar a tecla PLAY e ouvirei a mensagem de Natal do meu pai, explicando que aquele equipamento tem a capacidade de armazenar memórias e momentos felizes que jamais esquecerei e que eternamente continuarão guardados em meu coração.
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Meu pai grava ali poemas de Manuel Bandeira, Camões, Augusto dos Anjos e Raimundo Correia. Depois, muito desafinado, mas com emoção, ele canta o hino da Velha Academia: “Quando se sente bater no peito a heroica pancada…”
Ao fundo, escuto as vozes infantis de minha irmã e meus primos, que riem de alguma piada contada pelo Vô Briguet. Na varanda, Vó Maria e minha mãe discutem detalhes da ceia. Alguém, possivelmente o tio Álvaro, colocou na vitrola o compacto “A Harpa e a Cristandade”, de Luís Bordon.
Depois, faz-se um grande silêncio. Parece que todos foram embora e a festa acabou. A fita continua rodando, rodando, rodando: aquele silêncio são os meus anos de ateísmo.
Mas eis que, quando eu já quase perdia as esperanças de escutar mais alguma coisa, surgem vozes em um idioma desconhecido. Noto a angústia e a preocupação numa voz masculina, a voz de quem pede alguma coisa, e, em seguida, a resposta seca e ríspida de seu interlocutor. Ao fim do diálogo, ouve-se o som de uma porta sendo fechada.
Então, o homem da voz suplicante começa a repetir palavras melodiosas e ritmadas. Percebo que ele está orando. E me dou conta: aquela língua é o aramaico e aquele homem é José, que procura um lugar para sua jovem esposa prestes a dar à luz.
Meu amigo, meu leitor, meu irmão: saiba que essa não é apenas a fita da minha vida, mas a da sua também, e a de todo o Universo.
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Matéria: Gazeta do Povo





