Quem faz da educação ato político não é professor

Descobri, depois de uma mensagem institucional comemorativa do Dia do Professor, que não tenho a mais remota ideia da missão que cabe, hoje em dia, ao professor de ensino superior; e isso depois de mais de quatro décadas na universidade, três delas ministrando aulas. Dizia lá, de saída, que nós, docentes da instituição, estávamos de parabéns por cotidianamente fazermos da educação um “ato político”.
Ora, felizmente ou infelizmente, já não sei mais, sempre achei que essas platitudes do gênero “todo ato humano é político” eram somente isso, platitudes, “expressões coringa”, dessas que a gente saca da cartola quando não há muito o que dizer e o melhor é apelar para uma ideia naturalizada qualquer, ideia com que todos concordam porque não têm qualquer significado prático no mundo empírico; são da mesma família: “sou contra guerras”, “não gosto de injustiças sociais”, “sou a favor da inclusão”, “sou contra qualquer forma de discriminação” etc.
O que, afinal, qualifica professores universitários a levarem esperança e transformação para a vida dos seus pupilos? Por acaso somos sacerdotes, sábios iluminados incumbidos de civilizar os rústicos? O máximo que podemos oferecer aos alunos são ferramentas lógicas e conceituais para que possam entender minimamente a sociedade
Pertenço também a um tempo em que os profissionais das ciências humanas levavam muito a sério aquela partilha proposta pelo sociólogo Max Weber: há coisas que cabem ao político, outras, ao cientista. Quando as fronteiras se diluem e o cientista encarna o político, já não temos mais um representante do conhecimento diante dos alunos, mas um impostor falastrão que usa o seu poder para doutrinar jovens incautos. “A um professor” – dizia Weber – “é imperdoável valer-se de tal situação para buscar incutir, em seus discípulos, as suas próprias concepções políticas, em vez de lhes ser útil, como é de seu dever, por meio da transmissão de conhecimentos e de experiência científica”. Os que fazem da educação um ato político cotidiano não são professores, são profetas e demagogos que estão no lugar errado, pois deveriam expor as suas ideias na praça pública, onde poderiam ser livremente contestadas ou legitimadas, vaiados ou aplaudidos.
O meu estranhamento aumentou ainda mais ao ler que o tal ato político cotidiano que nós professores levávamos adiante produzia ou deveria produzir “esperança e transformação”, ou seja, os docentes são ou deveriam ser porta-vozes de um futuro risonho, mais justo e mais equânime; como se de fato soubessem o que será o futuro, qual o melhor dos futuros possíveis e quais caminhos devemos trilhar para alcançar esse paraíso.
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É uma manifestação singela daquilo que Hayek denominou “arrogância fatal”, uma mania danosa de achar que as ciências humanas são preditivas e prescritivas, isto é, que os cientistas das humanidades não só sabem para onde as coisas vão, como ainda sabem ensinar aos humanos comuns, destituídos desse olhar de lince ou de ciclope, quais comportamentos devem adotar para seguirem na direção correta. As humanidades dos séculos XIX e XX estão entupidas desses arautos de um mundo melhor, desses “ungidos” – como diz Thomas Sowell – cujo grande legado foi um barril de previsões e sugestões equivocadas e a consequente perda de prestígio e legitimidade dos especialistas – “especialistes”, como ironizam os maledicentes.
O que, afinal, qualifica professores universitários a levarem esperança e transformação para a vida dos seus pupilos? Por acaso somos sacerdotes, sábios iluminados incumbidos de civilizar os rústicos? O máximo que podemos oferecer aos alunos são ferramentas lógicas e conceituais para que possam entender minimamente a sociedade em que vivem e, sobretudo, para que possam tomar as suas próprias decisões com um conhecimento o mais amplo possível das possibilidades que essa mesma sociedade põe ao seu dispor.
Orientações existenciais, conselhos, somente um me parece adequado: quando o que está em jogo são os fatos da vida – da vida em sociedade inclusive – tenham respeito pelo senso comum, pois milhares de seres humanos, com suas experiências diversas, pensam melhor do que meia dúzia de ungidos, muitos dos quais com uma vida pessoal miserável e distante dos belos preceitos que querem enfiar goela abaixo dos outros.
O clímax da nota comemorativa do Dia dos Professores, no entanto, ainda estava por vir. Todo esse empenho messiânico, os tais atos políticos, é voltado para a construção de uma universidade “mais inclusiva, diversa e plural”. Antigamente, e não faz tanto tempo assim, a “expressão coringa” corrente era: por uma universidade pública, gratuita e de qualidade. O enunciado era vazio e contraditório – se é público não é gratuito, esquece-se do pagador de imposto – mas ao menos contemplava o papel central da universidade no mundo contemporâneo: produzir conhecimento e profissionais de qualidade.
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A nova “expressão coringa”, saída das pautas woke e da famigerada Agenda 2030 da ONU – uma cartilha que dita para os cientistas do terceiro mundo quais temas eles devem pesquisar para se internacionalizarem, seja lá o que isso signifique – nem sequer abana o rabo para o conhecimento. A sua transmissão e a consequente melhoria da qualidade de vida da sociedade em que a universidade está inserida, metas incontornáveis da instituição, são aí solenemente esquecidas.
É claro que ninguém é contra a inclusão e a diversidade, mas tais valores não são virtuosos por si só, ainda mais quando secundarizam a principal missão da universidade e minam a sua organização interna, baseada na hierarquia decorrente do conhecimento. Para mais, há uma lição que as ciências humanas e o mundo empírico nos ensinam e que não deve, em hipótese alguma, ser negligenciada pelos gestores: instituições com grande diversidade e pluralidade (escolas, conventos, prisões, hospitais etc.) exigem regras rígidas de convivência institucional, princípios norteadores claros, por vezes duros e mesmo coercitivos. Diversidade e regras frouxas de convivência é um belo sonho de verão; no entanto, quando se instalam de fato numa instituição, geram o caos e a corrosão institucional – um ambiente sem lei nem rei, onde ninguém está seguro.
Enfim, realmente não me senti muito homenageado pela homenagem. Mas não diria que isso me deixou angustiado e aflito, sedento por atualizar as minhas crenças e, na comemoração vindoura, sentir que abracei de coração causas tão virtuosas e passei a ser merecedor da homenagem. Diante do que temos visto e ouvido por aí, a universidade woke não tem lá dado muito certo e corre o risco de ter vida curta, curtíssima. A causa é, pois, ruim e o seu futuro incerto; não vale um esforço adaptativo.
Jean Marcel Carvalho França é professor titular de História do Brasil da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e autor, entre outros, dos seguintes livros: “Literatura e sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista, “Visões do Rio de Janeiro Colonial”, “Mulheres Viajantes no Brasil”, “Andanças pelo Brasil colonial”, “A Construção do Brasil na Literatura de Viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII”, “Piratas no Brasil“ e “Ilustres Ordinários do Brasil”.
Matéria: Gazeta do Povo




